Nunca estive tão só diz o meu corpo e eu rio-me
lembra-me alguém que se atardava sempre
diante de uma montra da rua da palma
a olhar para uma camisa que seria sua
assim que o ordenado lho pedisse
porque era aberta branca lisa de praia!
Seis e meia sete horas
saltava da vedeta vinda do Alfeite
e era como um gato
ia com os pés para a frente daquela montra
só para ver só para olhar sem ser reparado
só enquanto não fecham estas lojas
Esse, ou o António, que gostava de homens
E não só isso como o declarava
dois e dois quatro a quem bem queria ouvi-lo
porque, dizia, ajustando o corpete,
homem sou eu dentro da minha farda
Nunca estive tão só diz o meu corpo e eu rio-me
porque o corpo é o corpo
não tem nada a dizer não tem para onde ir
não lembra não se lembra quer estar sempre agarrado
suprimido
apertado
e se é belo é pior
vive num amarrote permanente
Sim decerto matéria atrai matéria
a boca faz-se sangue o sangue faz-se esperma
a urina espera a custo que o esperma se faça
para vir de novo à superfície do ar
Quando o total atinge a sua forma ejectável
preme-se noutro corpo noutros lábios idênticos
mas do lado de lá como num espelho
sua fiel imagem convertida
Isso o meu corpo quer — o corpo — noite e dia
ele julga que eu tenho a idade dele
que ainda só sei do homem pelo que transporta
a meia nau sobre o alto das pernas
— o quadrado das ânsias respirando abertas —
— a diagonal dos braços formando-se em centro —
mas o meu centro de aeração mudou-se
o meu relógio de mar parou em cima da mesa
o espelho meu foi puxado para trás
e foca — admirado — a magnificência liberta
Mário Cesariny, in A Cidade Queimada, Assírio & Alvim, 2.ª edição, Outubro de 2000, pp. 19-21.
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