sexta-feira, 11 de setembro de 2020

A NOSSA MORTE

 


   A notícia é lacónica: Sean Bonney (21 de Maio de 1969 – 13 de Novembro de 2019) morreu de acidente. Na internet, mundo outrora novo, são vários os vídeos e diversas as informações acerca do percurso deste activista britânico. Com tradução de Miguel Cardoso, a Douda Correria publicou por cá as “Cartas Contra o Firmamento” (Junho de 2016) e o derradeiro “A Nossa Morte” (Maio de 2020). Escrevi sobre o primeiro aqui, dedico agora algumas palavras ao segundo.

   Bonney vivia há cerca de cinco anos em Berlim, trabalhando num pós-doutoramento sobre a obra da beatnik Diane di Prima (n. 1934). Julgo ter entendido bem, era investigador do John F. Kennedy Institute for North American Studies na Free University de Berlim. Poeta empenhado em diversas guerras cívicas, engajado nos movimentos libertários de esquerda, praticante de uma “arte revolucionária”, por assim dizer, foi autor de inúmeros panfletos e de alguns livros de poesia, foi crítico, com tese sobre Amiri Baraka (o beat LeRoi Jones, com quem Diane di Prima teve uma relação), tendo-se estreado em livro em 2002 com volume intitulado “Notes on Heresy”.

   “A Nossa Morte”, enriquecido na edição portuguesa com as ilustrações de Tiago Cutileiro, é um livro angustiante. Foi publicado no ano em que o autor desapareceu e não augurava nada de bom. A “Carta em Tumulto” que abre o conjunto, com referência a Paul Celan, tem um remate que nos esmurra por dentro: «Estou a ver se ponho fim a esta merda. Ando a estudar magia, utopia e armamento. Prometo manter-te a par dos meus progressos». Segue-se um testamento intitulado “Da Escuridão Profunda”. As missivas são dirigidas ao leitor, havendo na prosa de Sean Bonney uma fúria, para com o estado do mundo em geral e para com a “ilha racista” em que nasceu em particular, que nos impele para um labirinto onde niilismo e surrealismo procuram debalde uma saída.

   Cativo num labirinto de referências literárias, musicais, filosóficas, políticas, artísticas, Bonney esforça-se por entender a actualidade destilando um ódio visceral à hipocrisia dominante. Os bois são chamados pelos nomes, mormente os bois da contemporaneidade britânica que levaram ao brexit, num esforço inquietante e porventura frustrado de autoconhecimento: «Porque o que quer que seja que eu vejo quando me olho ao espelho, não é algo que esteja disposto a aceitar» (das “Aproximações ao Inimigo Solar”). A atitude panfletária surge, deste modo, sabotada por um desencanto e uma desesperança interiores que transformam o texto num frágil escudo protector contra a opressão social.

   Maioritariamente em prosa, estes textos encenam deambulações, rotinas, uma deriva interior que não se imiscui de pedir de empréstimo a Artaud a célebre noção do “suicidado da sociedade” para ilustrar a catástrofe que anuncia. Há um tom apocalíptico neste livro que é indisfarçável, apocalipse sem expiação nem redenção. Referências a Baudelaire, Rimbaud, Pasolini, reforçam apenas o destroçamento interior e a solidão enquanto condenação do eu que despreza e é desprezado pelo status quo: «Meu enorme amor, ninguém sabe ler a linguagem que lá está escrita» (de “Abjecto (a partir de Baudelaire)”). A voz de satã que ecoa nestes textos não é a voz do riso, da sátira, é a voz de um desgosto insanável, é a voz de um torpor, de um coração espezinhado. Isto mesmo o torna testamentário, com o seu inventário de referências a perecer diante das sobras de uma vontade em ruínas: «Quem me dera ser como os insectos que vivem no vento e fazem coisas espantosas com a seda, mas, em vez disso, estou para aqui a gritar, o que não tem um caralho a ver com a magnífica seda tecida pelo riso dos insectos» (do “Livro de Memórias (a partir de Miyó Vestrini).

   Se há “literatura” capaz de nos esmurrar o estômago, ei-la forjada neste derradeiro livro do poeta britânico Sean Bonney. Ninguém sairá incólume de “A Nossa Morte”, como atesta o texto que oferece título ao livro: «Todos levados pelo terramoto». Desespero talvez seja o que se retém no final, um desespero que enfurece por nos colocar no centro onde embatem as forças e as fraquezas que se opõem dentro daquele que luta, espoletando um rebentamento interior, íntimo, do qual restam escombros sob a forma de poemas.

2 comentários:

Transhümantes disse...

Obrigado por estes dois últimos autores divulgados aqui. São ambos bastante pertinentes. Saúde!

hmbf disse...

Sempre às ordens. Saúde.