segunda-feira, 28 de setembro de 2020

APONTAMENTOS SOBRE JOGO DO FIM #4


 

Hamm está no centro da cena, quer estar no centro. Cego, paralítico da cintura para baixo, quando é deslocado no seu trono com rodinhas pede a Clov que o recoloque no centro. São inúmeras as especulações acerca do nome desta personagem. Hamm de hammer (martelo), simbolizará a tirania e a força da intimidação. É uma hipótese. Neste caso, é uma tirania do nada, do vazio, arruinada. É dele a derradeira fala de “Jogo do Fim”, para nos dar poesia: «Um pouco de poesia. (“Um tempo.”)Tu gritavas — (“Um tempo. Corrige-se.”) Tu clamavas pela noite; ela vem — (“Um tempo. Corrige-se.”) ela cai: ei-la que chega. (“Recomeça, entoando.”) Tu clamavas pela noite, ela cai: ei-la que chega. (“Um tempo.”) Bonito isto.» Trata-se de uma citação do poema “Recueillement”, d’“As Flores do Mal” de Charles Baudelaire. Ei-lo, na tradução de Fernando Pinto do Amaral:

 

RECOLHIMENTO
 
Ó dor que te agitas, está calma em mim.
Esperavas pela noite; ela desceu; repara
Na atmosfera obscura que envolve a cidade
Distribuindo paz e angústia pelos homens.
 
Enquanto a turba fútil dos saudáveis,
Açoitada pelo corrupto impetuoso dos prazeres
Vai colher mais remorsos no mundano,
Dor minha, dá-me a tua mão, vem comigo
 
Noutra direcção. Vamos ver o tempo fora de moda
Debruçar-se sobre as varandas do céu
Para ver surgir das águas a mágoa já inocente,
 
E ver o sol findo adormecer seu tesouro luminoso.
Como um longo sudário que se estende do Oriente
Ouve a noite, minha dor, ouve como se avança doce.

 

Charles Baudelaire, in “As Flores do Mal”, trad. Fernando Pinto do Amaral, Relógio D’Água, 2003. Na imagem, Fernando Mora Ramos ensaia Hamm. Fábio A. Costa será Clov.

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