terça-feira, 1 de setembro de 2020

UM POEMA DE MAHMOUD DARWICH

 


III

 

Letras brancas num quadro preto inspiram o assombro do amanhecer no campo. Como água vagarosamente deitada num cântaro que nunca enche, absorveste a forma incompleta e o seu som torturando a garganta para a subjugar ao poder do signo, submetendo a boca ao que o olho vê.

Quando a uma letra se junta outra quando a um absurdo se junta outro , uma forma obscura desvenda a clareza de um som, e essa clareza lenta permite ao significado adquirir a forma de uma imagem. Três letras convertem-se numa porta ou numa casa. Logo, letras letárgicas, sem valor algum quando isoladas, constroem uma casa quando unidas.

Que jogo este! Que magia! O mundo nasce gradualmente das palavras. A escola torna-se o recreio da imaginação. E corres para ela com o regozijo daquele a quem é prometida a dádiva da descoberta. Não apenas para decorares a lição, mas para confiares no poder de dar nome às coisas. Tudo quanto está distante se aproxima. Tudo quanto está fechado se abre. Se não te enganares na ortografia de «rio», o rio correrá na folha do teu caderno. E também o céu se converterá num dos teus haveres se não errares no ditado.

Tudo quanto está para lá do alcance das tuas minúsculas mãos delas será propriedade se adquirires a mestria da escrita sem defeito. Quem escreve uma coisa, possui-a. Cheirarás o perfume da rosa na tā´ final que se abre como um botão. E saborearás a amora de duas maneiras: na tā´ unida e na que está aberta como a palma da mão.

As letras estão à tua frente, liberta-as da sua neutralidade e brinca com elas como quem abre caminho no delírio do universo. As letras são inquietas, anseiam por uma imagem, e a imagem é ávida de significado. As letras são potes de barro vazios, enche-os com o desvelo da primeira conquista. As letras são um apelo mudo em seixos dispersos no caminho para o significado. Esfrega uma letra contra outra e uma estrela nascerá. Aproxima uma letra de outra e ouvirás o som da chuva. Põe uma letra em cima de outra e verás o teu nome desenhado como uma escada com poucos degraus.

Todas as letras esperam a forma, o ser, procuram a mão destra que crie a necessária harmonia. Apenas precisas de dar nome com a tua mão aos seres que já conheces e aos que mais tarde se te apresentarão.

A forma isolada da letra nuun fascina-te como uma tigela de cobre capaz de guardar uma lua cheia. Ecoa e anseia pela plenitude, todavia nunca a logra. Nunca pára de ecoar, por mais que se afaste, ou por mais que tu te afastes. Crescerá em ti e tu nela. Devolve-te o ânimo e aquieta-te as ansiedades como um amor persistente, aproximando-te dos outros. O nuun feminino, o dual e o plural, o coração do anā, as asas livres do nahnu. A al-Rah mān levar-te-á à fé tomado de júbilo, pelo que amarás a Deus e te livrarás da inquietação da primeira pergunta: Quem criou Deus?

Amas a poesia, e o ritmo que a letra nuun incita transporta-te a uma noite branca. Palavras que transformam a paixão de um cavaleiro: antes amava fazer guerra por um poço, agora fá-la por uma princesa raptada na terra dos génios. A história é sempre falha sem a trindade que o cavalheirismo, a poesia e o amor formam. Destinos com os quais tanto a espada como o poema lutam, em que nenhuma vitória é possível a menos que ambos estejam juntos. Nenhuma tribo triunfou sem poeta e nenhum poeta triunfou sem ter sido derrotado no amor. 

Quando os últimos convidados na reunião em casa do teu avô saem e ele te leva para a cama, as velhas histórias já te preparam para lhes prolongares a imaginação nos sonhos. Umas vezes, continuarás as batalhas de Antara; outras, as de al-Muhalhil. Entrarás em divisões que desconheces à medida que uma história convida outra nas intermináveis noites de Xerazade. Tornas-te parte de uma história num mundo mágico que em nada se assemelha ao que te rodeia.

E assim nasceu em ti o fascínio pelo ritmo e pelas histórias.

Estavas num lugar remoto e desconcertou-te o fio rompido entre realidade e imaginação, entre guerra narrada e guerra testemunhada.

Uma tarde, viste as mulheres do bairro em vaivém excitado; transportavam na cabeça sacos cheios de pedras que amontoavam nos telhados como munições. Os homens estavam ocupados a martelar pregos nas pontas dos paus. «O que é que se passa?», perguntaste. Disseram-te: «Amanhã de manhã começa uma guerra entre os dois grandes clãs da povoação. Temos os nossos parentes como aliados e eles também têm aliados. Mas triunfaremos.» Não perguntaste qual o motivo da guerra. Seria talvez o tédio ou a disputa da sombra de uma árvore, ou talvez consequência de uma história inventada. Todavia a batalha, que se prolongou até à noite, não teve mortos nem vitória. Abriu as portas do cárcere aos combatentes e fechou a porta das histórias em casa do teu avô. Choraste a pobreza das noites e tiveste de completar as histórias sozinho, na medida dos teus sonhos, sem narradores nem ajudantes!

Quanto às letras brancas no quadro preto, racharam como cal bolorenta por culpa de um pesadelo que te perseguiu até à escola: O meu pai morreu? Quando o professor te perguntou: «O que significa esta frase? “Espera até o carro passar.”», respondeste distraidamente: «Significa que, se vir um carro na estrada, não devo avançar antes de o carro buzinar.» O professor riu: «O que é que “passar” tem a ver com “buzinar”?» Replicaste: «Não é a mesma coisa? Os carros buzinam quando passam.» Repreendeu-te: «”Passar” significa “atravessar”.» Ainda hoje, sessenta anos depois deste revés linguístico, ouves a buzina de cada vez que escutas e lês a palavra «passar». Ris de ti para contigo do dom que os nossos primeiros erros têm de ficar gravados em pedra. Perguntas: Quando me curarei da definição do todo pela parte? A pena não é o pássaro, a árvore não é a floresta, nem a soleira a casa.

Mas as palavras são seres. O jogo enfeitiçar-te-á até dele fazeres parte. Passarás a vida a defender o direito que o jogo tem de te atrair para o labirinto enquanto ao trais para o humor. Lês sem compreenderes o que lês, portanto lês mais, desfrutando do talento das palavras para o desvio do mundano. As palavras são ondas. Aprendes a nadar seduzido por uma que te cobre de espuma. As palavras têm o ritmo do mar e o chamamento do mistério: Vem a mim em busca do que desconheces, vozeou-te o azul. Salvaram-te a sorte e quem vigiava a praia da separação definitiva do som das palavras. A alforreca continuou a picar-te, mas nunca perdeste o amor ao mar, a fonte do ritmo primordial. Como pode o mar ser aprisionado em três letras, a segunda das quais transborda de sal? Como podem as letras ser tantas palavras? Como podem as palavras ter espaço suficiente para abarcar o mundo?

Cresces devagar e facilmente. Desejas poder saltar mais depressa na corrida rumo a um amanhã no qual domarás as palavras e declamarás poesia zelosa, impelido pela força do amor e pelo dever de defender a tua tribo. O que é secreto e está escondido desvenda-se quando as palavras se revelam à consciência. Não é um jogo, como julgavas, mas o manifesto que observa o latente e o latente que emerge no manifesto. Convertes-te nas palavras e as palavras convertem-se em ti. Não sabes a diferença entre enunciador e enunciação. Chamarás ao mar um céu invertido; e o poço, o cântaro que protege o som do vento; e ao céu, o mar que pende das nuvens.

Há algo envolto em mistério. Não pode ser cheirado, tocado, provado nem visto. É o que faz da infância um sexto sentido. Chamaram-te «sonhador» pelas tantas vezes que deste às palavras asas que os adultos não viam. Provocaste o mistério e converteste-te em estrangeiro.

Ergue-te deste branco!

Volta a ser criança. Ensina-me a poesia. Ensina-me o ritmo do mar. Restitui às palavras a sua inocência primeira. Faz-me nascer de um grão de trigo, não de uma ferida. Faz-me nascer e devolve-me a um mundo anterior ao significado para que possa abraçar-te na erva. Ouves-me? A um mundo anterior ao significado. As árvores altas caminhavam connosco enquanto árvores, não enquanto significado. A lua despida rastejava connosco. Uma lua, não um prato argênteo. Volta a ser criança. Ensina-me a poesia. Ensina-me o ritmo do mar. Toma-me pela mão para que possamos atravessar juntos o abismo que separa a noite do dia. Juntos aprenderemos as primeiras palavras e construiremos um ninho secreto para o pardal, o nosso terceiro irmão. Volta a ser criança para que eu possa ver o meu rosto no teu espelho. Tu és tu? Eu sou eu? Ensina-me a poesia para que eu possa escrever-te uma elegia agora, agora, agora. Como tu ma escreves a mim!

 

Mahmoud Darwich, in Na Presença da Ausência, tradução de Manuel Alberto Vieira, Flâneur, 1.ª edição, Outubro de 2018, pp. 27-32.

 

Notas: Tā´: terceira letra do alfabeto árabe. Nuun: vigésima quinta letra do alfabeto árabe. Na grafia árabe, assemelham-se, respectivamente, a uma rosa e a uma tigela. Al-Rahmāan (O Misericordioso): 55.ª sura do Alcorão, caracterizada pela musicalidade (e rima) da letra nuun. Mahmoud Darwich nasceu em al-Birwa, localidade palestina na Galileia. Aprendeu a ler com o avô. Depois de as tropas israelitas invadirem a povoação onde vivia, em 1948, a família fugiu para o Líbano. Mais tarde fixaram-se em Deir al-Asad, uma cidade árabe da Galileia. Publicou o primeiro livro de poemas com apenas 19 anos. Deixou Israel para estudar na União Soviética, juntando-se posteriormente à Organização para a Libertação da Palestina. Foi então proibido de voltar a entrar em Israel. 30 livros de poesia publicados fizeram dele um dos mais relevantes autores da literatura árabe contemporânea, traduzido em inúmeras línguas e com diversos prémios amealhados. Padecendo há muito de problemas cardíacos, faleceu no dia 9 de Agosto de 2008. Originalmente publicado em 2006, “Na Presença da Ausência” é um livro inclassificável no género. Poema em prosa onde confluem memórias e pensamento político, testemunhos dolorosos do exílio e belíssimas metáforas da infância e do passar do tempo, ecoando aqui e acolá os males da guerra e reflexões acerca da identidade, da morte. Uma linguagem metafórica, nostálgica, elegíaca, que não abdica de uma inscrição no processo histórico: «Escreverás, pois, sobre História, não sobre mito.» Escritos em prosa, os textos deste livro encerram por vezes com versos onde não se nota qualquer diferença em termos de variação rítmica. A voz que ecoa no imo das frases assombra-nos, quer pelo tom auto-reflexivo e biográfico de algumas passagens, quer pelas paisagens que vai evocando com simplicidade. Extraordinário livro onde à metáfora é atribuído o dom de tornar presente o ausente.

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