terça-feira, 24 de novembro de 2020

DOIS LIVROS DE MARTA CALDAS

 


Posiciono-me diante dos livros de Marta Caldas (n. 1982) como alguém que olha para um objecto que lhe é estranho, inacessível, ou se ajoelha na esperança de que o animal lhe venha comer à mão. Não vem. O animal é esquivo, defensivo, selvagem. Ora se aproxima cautelosamente, ora rompe numa correria desenfreada e se afasta. Não é animal que se deixe domesticar, mais certo é morder-nos a mão e zarpar. Estou familiarizado com o concretismo brasileiro, com as experiências levadas a cabo, a partir da década de 1960, pelo chamado Movimento de Poesia Experimental Portuguesa, conheço toda a retórica da anti-arte que fertilizou diversos vanguardismos, do automatismo à escrita caligramática, da experimentação tipográfica e visual a várias formas de abstraccionismo cujo princípio era o da privação de sentido, e de tudo isso julgo serem herdeiros Assembleia (Douda Correira, Março de 2019) e E Aquáticos (Setembro de 2020). O primeiro é dedicado a Alice Becker-Ho, escritora francesa que foi cansada com Guy Debord. Não lhe conhecendo a obra. Conheço, todavia, a de Manuel Rodrigues, pelo menos desde a publicação de Múrice (Março de 2015), que me chegou pela mão generosa de um amigo ligado às artes plásticas. Também a autora de E Aquáticos tem formação em Artes Plásticas, sendo várias as afinidades que encontro nestes dois livros com o que conheço de Manuel Rodrigues. O modo como trabalham a linguagem, colocando-a numa situação limite em matéria de significação, é similar. A forma como estes textos, na sua variedade multilingue, resistem, paradoxalmente, a qualquer tentativa de tradução, é semelhante. A resistência, se assim podemos dizer, à comunicabilidade, adoptando estratégias e práticas que baralham o sentido a ponto de parecerem preferir o não-sentido, é idêntica. Este aspecto é especialmente ironizado por Marta Caldas em Assembleia, num texto que vai sendo desenvolvido mediante a utilização de indicações gráficas e verbais que apontam para uma «extensão nova de sentido». Entramos no texto como quem entra num edifício desconhecido, seguindo as indicações para algo que aparenta ser um processo em construção, a organização de uma instalação, de um acontecimento, para o qual contribuem várias enumerações, acções, advertências. Percorremos os corredores às cegas, confiando que as palavras nos levarão a algum termo, a uma conclusão, a uma imagem ou a uma ideia conclusivas. Interrogo-me à medida que vou percorrendo as páginas como quem sai de uma sala para entrar noutra: que textos são estes? É como se estivesse a ler um caderno de apontamentos, preenchido por notas imprecisas, com relações misteriosas, diálogos. «Não era por aí. Perdi-lhes a orientação». Às tantas surgem laivos de uma narrativa imprecisa onde se descobre um nome próprio, Simon, cores, luz, elementos naturais, mas sempre num contexto de filiação a certa poética explosiva que escape a modelos gramaticais, sintácticos e semânticos, a discursos estandardizados, uma poética que se está literalmente nas tintas para a norma que se impõe enquanto garantia de posteridade. Ler estes livros é participar numa experiência de sabotagem da geometria textual que configura a ideia de literatura: «Dizadeusquetenhosaudades». E Aquáticos introduz um elemento que, não estando totalmente ausente no livro anterior, é neste muito mais central: o erotismo. Aqui o vernáculo mistura-se com fonemas instauradores de uma tensão fonética que, por diversas ocasiões, nos desloca para o imaginário histórico e cultural fixado pelos textos sagrados judaico-cristãos: «a A dão trufas». Às tantas dá a sensação de estarmos a ler algo produzido por um gerador de texto com o qual o corpo humano estabelece uma espécie de paronímia. Ambos são máquinas, ambos produzem texto: «notável combinação humana». Que textos são estes? São um catálogo de incertezas desafiador da nossa postura enquanto leitores. Nada têm para nos dizer que não resulte de um gesto explosivo da significação tradicional, de uma permanente e obstinada sabotagem das convenções determinadoras dos jogos de linguagem, distanciando-se por completo da ideia feita de uma voz poética padronizável, até se recolher num lugar anterior ao pecado do conhecimento: «a não esquecer: ma grossa bruma / e’le disse: / - não comas de nenhuma árvore / de árvore nenhuma».

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