quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

DIRTY JOHN

 


   O único tipo dessa época que tinha vindo da baixa, que vinha mesmo da cena da baixa, era o Dirty John. Trazia com ele um certo ritmo, um certo ambiente terra-a-terra: o cheiro fétido da roupa velha e dos charros.
   Dirty John merecia mesmo a alcunha: era conhecido pela falta de frequência dos seus banhos. De Inverno, nunca tomava banho, nem sequer mudava de roupa. Em Novembro, vestia uma camisola azul escura esburacada que lhe delineava o rosto magro e moreno e o fazia parecer um vampiro do gueto, e só a tirava em Abril do ano seguinte. Isto é, se a Primavera não tardasse. Tinha um relógio de pulso Timex de sete dólares de pulseira larga, e quando ia para a cama tirava o relógio, e a pulseira deixava uma marca branca no pulso cinzento. Cor de cinza, olhos brilhantes de fuinha a espreitar da toca. Corpo ágil e flexível — o corpo de um bom homem de recurso, e a capacidade de se vir seis ou sete vezes no mesmo número de horas.
   Dirty John era sempre divertido, estava sempre cheio de esquemas para enriquecer depressa. O meu preferido era o plano de comprar uma parte do deserto do Arizona, uma daquelas longas estradas com duas pistas, construir uma cidade à volta, fazer aprovar um limite de velocidade de 80 km, e passar multas incríveis às pessoas que andassem por lá à noite. Até nem era um mau plano; desde então, já passei em muitas cidades dos Estados Unidos que subsistem dessa maneira. Orem City, no Utah, por exemplo.
   Dirty John raramente ia lá a casa, mas quando ia era sempre uma ocasião especial. Lembro-me de várias vezes nesse ano em que fomos para a cama por volta das sete e fizemos amor seis ou sete vezes antes de nos levantarmos às duas da manhã para ir comer qualquer coisa à lanchonete do Rudley, no parque. Depois trazíamos sanduíches extra, íamos para casa, voltávamos para a cama e só adormecíamos depois do amanhecer. 
   Dirty John vinha dos bairros de lata de Pittsburgh, e estava cheio de paranóia pessimista e sem ponta de esperança que eu reconhecia em mim mesma mas nunca encontrara em mais ninguém. Tinha a certeza que tudo ia acabar por correr mal. E provavelmente, tinha razão. Mas na cama era um prazer total, era muito delicado a fazer amor, duma maneira suave e forte, que me apanhava de surpresa, de tal forma que luzes azuis como se fosse cocaína começavam a derreter nas entranhas antes de me aperceber do que quer que fosse. Não esperava que o cortejassem, como o Don; não era uma presença melancólica como uma montanha na janela da cozinha, como o Pete; não se armava em durão que SABIA tudo, como o Antoine; era descontraído, um amante descontraído que nos tomava de assalto quando menos se esperava. Dirty John era diversão, camaradagem e uma boa queca, um corpo esguio e pequeno que encaixava no meu, e embora nunca tomasse banho de Inverno, naquela Primavera até se saiu bem, porque nunca cheirava mal quando estávamos juntos, e o seu caralho estava sempre lavado — que mais é que uma rapariga pode querer?
   Deixava-me com uma boa sensação quando nos separávamos, pois sabia que os jogos que eu gramava estavam a ser perpetrados noutra parte da cidade, silenciosamente e em segredo. Como daquela vez em que me disse que ao fim de dois dias de solidão e muita meditação, tinha conseguidos entrar em contacto com as criaturas dos discos voadores. Iam mesmo a entrar para levá-lo pela janela como ele lhes pedira, quando percebeu subitamente que ainda não estava preparado, e disse-lhe isso, e eles foram-se embora obedientemente. Pessoas assim eram raras em meados da década de 1950, e eu apreciava Dirty John — um bom amigo que chegava na sua mota roubada e entrava em silêncio pela cozinha sempre que eu pensava muito nele: quando o chamava.

Diane di Prima, in Memórias de uma Beatnick, trad. Maria Augusta Júdice, Teorema, Maio de 1999, pp. 154-156.

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