XX
A dor é terna
como é terna a queda do cavalo
que um dia imaginei sentado à minha porta
quando chegava da escola preparatória
onde nenhum manual me havia preparado
para o espanto
não de ver um cavalo sentado
mas um cavalo sentado à minha porta
eu que vivi os meus dez primeiros anos
ao lado de um dentista
que vivia ao lado de um sindicato
que por sua vez ficava em frente a um sapateiro
numa rua que se dizia ser da igreja que
ora descia ora subia
e no adro havia uma carrinha com livros dentro
livros que também nunca imaginei terem sido
escritos
e que nos visitavam todas as semanas
um cavalo sentado à porta da minha casa
é coisa que não cabe em livro nenhum
onde é certo caber a minha timidez
pois não soube articular palavra
quando eu queria dizer
entra
eu tenho um quintal e no quintal
uma árvore que dá marmelos
e uma mãe que faz marmelada
e podemos ser amigos
pois ela a ti não se atreverá
sei que não
confia em mim
eu protejo-te
mas não
entrei a olhar para o chão
à espera que este me sacudisse
para a vida que desejava
o que não aconteceu
quase nada acontecia
a não ser a minha imaginação
como as sombras à noite no meu quarto
que vinham para me engolir
num abismo desconhecido
e terrífico
não só a minha rua descia para a igreja
como o meu quintal terminava numa outra
logo após o galinheiro
foi aqui que assisti à morte de deus
e não
não caiu do cavalo
creio que lhe faltava dentes para tal
o cavalo caiu apenas no esquecimento
de um crescimento precoce e inesperado
que uma mudança de casa provoca
em quem sofre de vertigens
azuis
hoje lembrei-me de ti
mas a minha porta já não é a minha porta
embora a dor seja a mesma
João Pedro Azul (n. 1972), in Um Cavalo Sentado à Porta
(2020). Tomemos como exemplo este poema, no qual o autor encontrou motivo para
intitular o seu livro de estreia. Entre o incipit e o remate inscreve-se a
razão de ser de uma sensação emocional, a “dor terna” enraizada num lugar distante
e num tempo passado. A sequência central deste livro é profícua em situações evocativas
que têm nas memórias da infância a sua matriz, desdobrando-se em referências
domésticas com palco numa casa dentro e à volta da qual as acções decorrem.
Neste caso o leitor é deslocado do exterior para o interior de uma casa,
acompanhando o percurso de um sujeito poético que elenca diversos elementos muito
concretos acerca da idade que tem, de onde vem, onde se encontra, qual a envolvência
do lugar. O tom é narrativo, sobressaindo a analogia estabelecida entre a
deslocação do exterior para o interior e a deslocação de um espaço real para um
espaço imaginativo. O cavalo sentado à porta de casa é produto da imaginação de
uma criança, uma espécie de amigo imaginário.
Encontra-se com frequência nestes
poemas esse efeito de entropia que aproxima os versos da prática surrealista,
ainda que sopesada por uma memória e uma experiência vivida matriciais. O pressuposto
surge explicitado no poema XXIX: «A realidade não é assim tão líquida» (p. 52).
Noutros casos, este efeito joga-se no experimentalismo formal de tipo concretista
(ver poema IX), na derrogação de estruturas uniformes quanto à distribuição dos
versos, na oposição lúdica e irónica entre facto e ilusão (no poema XXIV, por
exemplo, a casa da infância aparece envolta num manto de dúvidas quanto às suas
reais/factuais propriedades). Por um lado, talvez o mais simples, questiona-se
o peso que facto e imaginação têm na construção da memória. Por outro lado,
porventura mais complexo, e voltando ao cavalo imaginário, a natureza da
memória acarreta uma dor que se articula com o esquecimento.
A infância é assim reconstruída partindo de um trabalho que torna presente tanto a perda — “o
cavalo caiu apenas no esquecimento” — como a irrevogabilidade ou o carácter
definitivo da dor, única realidade consistente, constante e inalterada para lá
dos trabalhos reconstrutivos da memória. Ainda que seja terna, e a ela possamos
chamar nostalgia, esta dor, sendo nostálgica, apresenta igualmente um carácter
elegíaco que se reflecte em dois termos repetidos ao longo do livro: medo e
morte. Também neste poema a morte ocupa lugar, nomeadamente a morte de um deus
que parece estabelecer uma relação metonímica com outra entidade imprecisa.
Invocando a figura do avô, no poema XI o problema coloca-se assim: «Nunca
entendi essa coisa de levar / o medo para casa / e aconchegá-lo no leito /mas /
tal como o meu avô / eu cresceria às aranhas / no meu quarto coberto / de
sombras / Os medos reflectiam todos em mim / assim como aquelas palavras / que
mais pareciam soluçadas / por mim // eu não quero morrer» (pp. 24-25).
Além do
núcleo de 31 poemas que compõem o livro, há ainda um poema-prefácio e um
poema-posfácio, assim como alguns dispersos de proveniência diversa. Aparentemente
fora do contexto nuclear da obra, nenhum desses poemas belisca a coerência do
todo. Acrescenta-lhe, talvez, desvios de humor que a insólita conjugação de duas
epígrafes (Shakespeare e a telenovela Tieta lado a lado) permite antever. A
poesia de João Pedro Azul não exclui possibilidades, antes as materializa com
espantosa naturalidade.
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