Por entre as qualidades essenciais ao surgimento da magnanimidade, convém não nos abstrairmos do talento para o esquecimento, despesa do imoderado, consumo do excesso negativo. Este factor constitui a condição de possibilidade de toda a intersubjectividade, visto que o rancor impeliria, mais cedo ou mais tarde, à ruptura total com o que quer que fosse, sendo o mesmo válido para o ressentimento. Efectivamente, é impossível deparar com uma individualidade exclusivamente dotada de qualidades e desprovida de qualquer defeito. Mais cedo ou mais tarde sofreremos o efeito das fraquezas dos demais — que, pela sua parte, também não evitam esbarrar com as nossas. Da mesma forma, convém que nos resignemos, por pouco que seja, às extravagâncias e aos sofrimentos oriundos das negligências alheias, assim como devemos manifestar, tanto quanto for possível, a longanimidade. Acaso a soma dos desprazeres exceda a dos prazeres que devemos incutir ao parceiro ético, teremos de considerar a hipótese de uma ruptura, optar por esquecer inteiramente. Por outro lado, se o resultado aritmético se mostrar mais favorável a uma graça que uma indelicadeza, passaremos a agir activamente no sentido de alcançar o esquecimento. É evidente que tal não significa que devemos actuar como se nada do que foi dito ou efectuado, calado ou esquecido, tivesse sido real, mas antes agir no sentido de não tomar em consideração o pior que tivemos a lastimar. Há que evitar os parasitas, as interferências, desejar uma comunicação processada num registo clarividente, quer de uma parte, quer de outra. Esquecer é sinónimo de despender integralmente, esgotar a conta, liquidar. Imaginemos, de outro modo, uma existência onde a capacidade de esquecimento não tem lugar: viveríamos incessantemente com a memória dos sofrimentos, dos tormentos, das tristezas, das tragédias, das inexperiências e dos monstros mais obscuros. É estritamente necessário substituir estes fenómenos pelo desejo de paz, muito simplesmente porque do esquecimento advém uma maior satisfação que do ressentimento. Em caso de nãos er possível concretizá-la, é preferível recorrer a uma indiferença total, um esquecimento puro, não mais os próprios estragos, mas as pessoas que os causaram. Podemos equiparar esta ascese a uma catarse, uma purificação dos pesos e dos vagares que em nós residem. A partir do momento em que as zonas maléficas se instalam nos recônditos da alma, não há outro remédio senão a purgação, o dispêndio dos maus humores, como que procedendo a uma sangria ética.
Neste contexto, o esquecimento não equivale ao perdão em nome do amor pelo próximo; pelo contrário, ele é tecido em favor de um princípio de equilíbrio que satisfaz a harmonia do próprio. Com o objectivo de esconjurar as perturbações bem como os efeitos negativos do sofrimento que corrompe um corpo habitado pelo desejo de vingança, a amnésia provocada limpa os céus carregados e nublados; ela activa a saúde, em detrimento das tensões mortíferas e das paixões mórbidas; o negativo ataca, destrói, deteriora profundamente o corpo e a alma, a ponto de paralisar toda a capacidade de agir, de reflectir. Guiado pelo ressentimento, o indivíduo deixa-se manobrar pelo seu desejo de vingança, ele pretende opor a violência à recordação do dissabor, cultivando, para este fim, a besta que apodrece dentro de si. A morte fervilha em cada um de nós, sob múltiplas formas; o rancor e o ressentimento encontram-se entre as mais activas, as mais temíveis. O homem que cultiva a animosidade é um ser medonho, vulgar por entre o seu ardor de fomentar as tensões destrutivas.
Michel Onfray, in A Escultura do Eu - A moral estética, trad. Nuno Russo, Quarteto Editora, Julho de 2003, pp. 124-125.
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