A tarde de 14 de Novembro de 1991 não deve ter sido —
muito menos para Alina— uma tarde qualquer. Consta que antes de embarcar para
sempre na barca de louça atracada numa casa de banho num quarto de hotel, deixou
escritas, sobre a mesa de cabeceira, estas palavras que, à maneira de um colofão
atordoado ou de uma despedida entorpecida, bem podiam causar inveja num diário: “Que estranho… A luz
está apagada e porém juraria que acabo de acendê-la. Pelo menos, amanhã a
empregada não terá de fazer a cama”.
Alina Reyes Moral
nasceu a 1 de Outubro de 1960 em Abia de la Obispalía, povoado remoto de
Cuenca. Fruto de um amor proibido e misterioso, foi abandonada pela mãe quando
tinha sete anos. Sob o amparo anónimo do remorso paterno, uma vontade obscura
conseguiu interná-la num colégio carmelita onde permaneceu até cumprir os
dezoito anos. A partir dessa idade, foi tropeçando em diversos empregos e em
distintas cidades de Espanha, até que a sorte — ou talvez a desgraça —
de conseguir uma vaga nos Correios, a trouxe a Madrid, onde, com mais engenho
do que determinação, alentou as suas mais secretas fantasias na busca de um
sólido destino literário.
Quando a
conheci, Alina Reyes andava pelos vinte e sete anos. Era uma mulher baixa, de
olhos esverdeados e sorrisos que plasmavam no seu rosto um ar ingénuo, impregnado
de certa melancolia. Recordo que, amiúde, depois das nossas leituras públicas
de poesia no El Paredón, ela costumava confessar aos que lhe eram mais íntimos:
“Tenho a convicção de que os meus melhores versos foram escritos por uma
impostora. Não sucede o mesmo convosco? Não têm a sensação de por vezes serem
outro? Não vos acontece descobrir de repente esse fantasma que entedia as
vossas vidas quando vos olhais ao espelho?”
Durante várias
horas da última noite do ano de 1990 — fogo-de-artifício, chamas, beijos
emocionados e álcool —, sonhei que algum dia Alina Reyes seria minha mulher.
Creio que a amava. Creio que a amei até àquela tarde inesperada de 14 de
Novembro, quando, sem motivo aparente, Alina se fechou num quarto de hotel,
abriu uma torneira, esperou que a banheira ficasse cheia e cortou as veias.
Uns meses depois,
a generosidade de um obscuro e misterioso amigo — a carta e o dinheiro que
recebi chegaram-me de Cuenca — permitiu-me editar a quase totalidade
dos seus poemas, reunidos sob o título A mulher de Lot. Desse livro
imprimiram-se mil e quinhentos exemplares e, como era de esperar, perdeu-se
pelos viciosos circuitos literários com mais pena do que glória. Apenas uma
resenha tímida — obviamente minha —, aparecida no hoje obsoleto suplemento
cultural do El País, apostava em Alina. Ou melhor, na sua impostora.
A INVENÇÃO DE ADÃO
Em que vale,
em que jardim de nunca
decidiste não existir
para que eu te imaginasse.
O BARCO
Hoje é uma tarde qualquer.
Ao longe escuta-se a sirene
de um barco sem regresso,
rumando até ao nada
que a todos espera,
uma tarde qualquer
na barca à deriva dos mortos.
Nota: Alina Reyes é uma personagem de ficção criada por
Eliseo González, in Galería de Suicidas, Huerga y Fierro editores, Maio de
2003, pp. 9-17. Versão de HMBF.
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