terça-feira, 30 de março de 2021

LAB'BEL - 10 ANS (2010-2020)

 



A página (https://www.lab-bel.com/en/) informa que Lab’Bel é um laboratório artístico do Grupo Bel. O décimo aniversário foi comemorado com a publicação de um catálogo onde encontramos inventariadas as variadíssimas exposições e diversos eventos levados a cabo, pela Europa fora, mas com sede em França, no contexto da actividade do laboratório. Um dos projectos tem o nome de “Metaphoria” e esteve por cá quando Guimarães foi capital europeia da cultura. As palavras de dois amigos poetas, o Rui Costa e a Joana Serrado, eram parte integrante desse projecto, que entretanto também esteve em Atenas e Paris. Eu estive em Guimarães, e quis o acaso que me encontrasse por lá com o pai do Rui (António Costa, o bom). No regresso, escrevi umas coisas sobre o que vi. A Sílvia Guerra, Directora Artística do Lab’Bel desde 2010, pediu-me entretanto que voltasse ao tema. O resultado integra o dito catálogo. A versão rosa é em inglês, a amarela em francês. Chegou-me ontem, finalmente, com a permissão de uma pandemia que tudo atrasa. Deixo aqui o texto original, para o caso de terem interesse:

 

APARAS DE UMA VISITA A METAPHORIA

Guimarães, 22 de Outubro de 2012

 

 

1. Numa das entradas dos seus diários, Cesare Pavese escreve que A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Eis uma possível noção de poema, senão de toda a criação artística, enquanto discurso que se distancia do território da descrição para se arriscar no campo minado das semelhanças, das explosões de nexos, da teia de elos entre real e irreal. O poeta não estará tão interessado em comunicar como parece estar em desconstruir e subverter o processo comunicacional, fazendo incluir entre emissor e receptor um terceiro elemento, imaterial, invisível, mas sólido, ameaçador, dilacerante. A este terceiro elemento damos o nome de metáfora.

 

2. As metáforas têm vida própria. Os homens são meros veículos para a coisificação das metáforas. A relação que estabelecemos com a metáfora é inalienável da tentação para a submeter às leis do mundo, essa é a nossa fraqueza. Sempre que alguém diz “parece azeite” nós tentamos encontrar correspondência entre dois sujeitos no enunciado (um explícito, outro implícito), sendo difícil de aceitar a inexistência de uma correlação entre ambos. São estas as regras do jogo, como se o que parece não pudesse ser apenas e tão-somente uma aparência, uma sombra.

 

3. Além de poeta, Rui Costa foi romancista. No romance “A Resistência dos Materiais” (2008) ele subverteu a alegoria idealista de Platão para nos propor um universo onde entre verdade e sombras deixava de haver qualquer clivagem. “Nós é que somos a sombra do que as nossas sombras são”, diz. A esta subversão do sentido corresponde tanto uma desconfiança dos mecanismos racionais que levam à verdade como a necessidade de uma linguagem libertadora. O leitor de poesia sabe que a beleza, a força, a vivacidade das metáforas residem, precisamente, na capacidade que têm de oferecer uma outra dimensão, deslocando-nos de um campo semântico paradigmático, onde o leitor de poesia não faz questão de estar, para um campo semântico metafórico. Daí que as metáforas sejam libertadoras, desviam-nos da rota asfixiante do real, ampliam as coordenadas da lógica, libertando-nos das amarras do normal, levando-nos a saltar o muro que separa a ordem do caos.

 

4. O caos é ao mesmo tempo sedutor e ameaçador. Estamos sempre a tentar pôr ordem no caos. O mundo à nossa volta é caótico, o universo surge-nos caótico, o desconhecido é caótico, pelo que a grande tarefa humana tem sido descobrir leis que façam acreditar haver organização no caos. Esta dinâmica que leva do caos à ordem, até que a ordem se revele insuficiente para a explicação do caos, é um movimento incessante que só pela metáfora pode ser dito. Metáfora é movimento, é trânsito, é deslocação.

 

5. Desloquei-me a Guimarães, em Outubro de 2012, para ver a exposição com curadoria de Sílvia Guerra. Entreguei-me ao regaço de “Metaphoria” e deixei-me embalar pelos diferentes trabalhos onde pude reencontrar-me, também, com as metáforas de dois amigos poetas: o Rui Costa e a Joana Serrado. Partilho agora convosco o que então escrevi numa página dos meus diários (inéditos):

 

Hoje pinto largos contornos nas coisas que vejo, desenho-os como quem sente preguiça na elaboração de um pensamento delineado, de fronteiras quase invisíveis ou, pelo menos, indistintas. Rouault aflora ao pensamento, vá-se lá saber porquê, nos braços dos homens que trabalham nas obras, nas roupas tingidas de tinta e cimento, nas mulheres carregadas com sacos de plástico, nos rostos carregados das viúvas e nas crianças que transformam lixo em brinquedos, nos veículos freneticamente estacionados e nas lajes inscritas ao balcão dos cafés. Sempre que a temperatura muda, dá-me para isto. Regresso depois de mergulhar a cabeça num barril de metáforas. Debaixo de água ouviam-se vozes, música, poemas, viagem subaquática com pés na terra. Deve haver algo orgânico na linguagem das metáforas, nas sombras, deve haver algo de sublime neste corpo sem órgãos do pensamento. Invejo, por vezes, a subtileza dos acólitos da palavra para poder dizer, sem contornos nas palavras, o que penso e quanto vejo. Não sendo possível, limito-me a agarrar no que vejo com as mãos desajeitadas do discurso poético. Ainda bem que há pessoas de contornos finos, quase invisíveis, ainda bem que existem com mãos limpas e firmes, unhas exemplarmente arranjadas, dedos esguios, ainda bem que há pessoas sem calos nas mãos. Eu conspurco tudo aquilo em que toco. Se soubesse passar com as limas nas unhas dos dedos que vêem, se soubesse afastar o texto do pretexto e ficar a sós com os pés na terra, a cabeça debaixo de água a ouvir sombras, por certo não quedaria estático nesta incerteza. Vale a pena trazer à liça as palavras de Youcenar: “Nenhuma vista que não se apodera de todo o espírito é visão; nenhum pensamento, por válido que seja, é outra coisa que um fruto ou um subproduto passageiro, desprovido do sentido de eternidade no instante, de extensão ao interior de um ponto nem sequer fixo, que a intervalos muito longos a visão do espírito por vezes confere e se torna em alguns casos possível ressuscitar pela recordação.” Com que visão terão sido pintadas as coisas que vejo no regresso a casa? Com a visão do espírito, a visão dos olhos ou a visão total? Fixo a vista nas coisas para nelas encontrar o quê?

 

6. Passados estes anos, folheio o catálogo do que me foi dado ver reencontrando-me com o que então não vi. Se o mar parece azeite, talvez a lua possa ser uma lâmpada. Acesa na noite, a lâmpada-lua de Katie Paterson remete-me, na problematização que encena da luz, para a Visio intelectuallis referida por Yourcenar. Já não são apenas os olhos a participar da visão, a qual se nos apresenta tão limitada sempre que confrontamos o mesmo objecto a olho nu e a olho revestido por um qualquer instrumento que permita ver para lá do visível. Este instrumento não tem de ser físico, técnico. A metáfora é um instrumento que permite ver onde a vista não alcança, daí o arrebatamento que provoca. Podíamos citar o êxtase dos místicos e o delírio dos loucos, Margarida Maria Alacoque e Antonin Artaud.

 

7. Num belíssimo ensaio dedicado à poesia de Paul Celan, George Steiner refere a dificuldade sentida por mentes treinadas para a visão empírica quando colocadas perante a força de um discurso simbólico e metafórico. Não estranhamos tais dificuldades, ainda que julguemos estar a elas associado tanto de medo quanto de preguiça. Medo do desconhecido e preguiça para ir mais além. A metáfora desloca-nos, coloca-nos em trânsito, é, tal como os veículos pesados oportunamente fotografados por François Prodromidès, um meio de transporte entre dois pontos, sendo que apenas o ponto de partida surge óbvio e determinado. Desconhecemos o ponto de chegada.

 

8. Pascal Quignard dizia dos fragmentos que eram rasgões, interrupções na continuidade de um discurso, aparas, farrapos, um cancro que corrompe a unidade de um corpo, desagregando-o, exercendo sobre esse corpo uma violência que o transforma em “100 biliões de sóis”. Olhamos a noite estrelada e vemos em cada estrela um fragmento do mundo, contemplamos o deserto e aceitamos cada grão de areia como um fragmento do mundo. Partir, romper, despedaçar, deixar em pedaços, em pó, em migalhas, reduzir a nada, eis o significado etimológico de fragmen, fragmentum. “Em grego o fragmento é klasma, o apoklasma, o apospasma, o pedaço separado por fractura, o extracto, alguma coisa arrancada, violentamente puxada.” A metáfora tem esta função de fragmentar, interrompe o sentido, instaura a descontinuidade, para ampliar a linguagem estilhaçando-a. Num certo sentido, podemos dizer que toda a metáfora é fragmento.

 

9. Estas aparas sobre uma visita a Guimarães são metáforas de um pensamento em trânsito. A Terra move-se em torno de um sol que há-de um dia explodir, não tanto para morrer, como para interromper as fases da lua. O universo é uma imensa metáfora. Com o passar dos anos, uma mesma imagem inspira-nos sensações, reflexões, emoções diversos. Hoje em dia, os contentores e as nuvens de Prodromidès adquiririam uma simbólica porventura mais trágica e obscura do que a que tinham em 2012. Há toda uma metáfora da clandestinidade que está por fazer, para a qual contribuem com a própria vida refugiados e imigrantes deslocando-se sobre a terra como na metáfora se desloca o pensamento.

 

10. A História ainda não terminou.

 

Henrique Manuel Bento Fialho

29/05/2020

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