segunda-feira, 19 de abril de 2021

ESPECTÁCULO E ESPECTADOR

 


Jamais a censura foi tão perfeita. Jamais a opinião daqueles a quem se faz crer ainda, em certos países, que são cidadãos livres, foi tão pouco autorizada a tornar-se conhecida, cada vez que se trata de uma escolha que afectará a sua vida real. Jamais foi permitido mentir-lhes com uma tão perfeita ausência de consequência. O espectador é suposto ignorar tudo, não merecer nada. Quem olha sempre, para saber a continuação, jamais agirá: e tal deve ser o espectador.
 
p. 35.
 
O fluxo de imagens domina tudo, e é igualmente qualquer outro que governa a seu gosto este resumo simplificado do mundo sensível; que escolhe aonde irá esta corrente, e também o ritmo daquilo que deverá manifestar-se nela, como perpétua surpresa arbitrária, não deixando nenhum tempo para a reflexão, e em absoluto, independentemente do que o espectador possa compreender ou pensar. Nesta experiência concreta da submissão permanente, encontra-se a raiz psicológica da adesão tão generalizada àquilo que lá está, que vem a reconhecer-lhe ipso facto um valor suficiente. O discurso espectacular cala evidentemente, além de tudo aquilo que é propriamente secreto, tudo aquilo que não lhe convém. Daquilo que mostra ele isola sempre o meio, o passado, as intenções, as consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Já que ninguém pode contradizê-lo, o espectáculo tem o direito de contradizer-se a si mesmo, de ratificar o seu passado. A altiva atitude dos seus servidores quando têm de fazer saber uma versão nova, porventura mais mentirosa ainda, de certos factos, é de ratificar rudemente a ignorância e as más interpretações atribuídas ao seu público, ainda que sejam os mesmos que na véspera se apressavam a difundir esse erro, com a sua habitual certeza. Assim, o ensino do espectáculo e a ignorância do espectador passam indevidamente por factores antagónicos quando nascem um do outro. A linguagem binária do computador é igualmente uma irresistível incitação a admitir em cada instante, sem reservas, aquilo que foi programado como muito bem quis qualquer outro, e que se faz passar pela fonte intemporal duma lógica superior, imparcial e total. Que ganho de rapidez, e de vocabulário, para julgar de tudo! Político? Social? É preciso escolher. O que é um não pode ser o outro. A minha escolha impõe-se. Sopram-nos, e sabe-se para que são estas estruturas.
 
pp. 41-42.
 
É necessário que haja desinformação, e que ela se mantenha fluída, podendo passar por todo o lado. Lá onde o discurso espectacular não é atacado seria estúpido defendê-lo; e este conceito, contra a evidência, usar-se-ia rapidamente par ao defender a respeito de assuntos que, pelo contrário, devem evitar chamar as atenções.
 
p. 62.
 
O conceito confusionista de desinformação foi posto em alerta para refutar instantaneamente, ao simples sussurro do seu nome, toda a crítica que as diversas agências de organização do silêncio não foram capazes de fazer desaparecer. Por exemplo, poder-se-ia dizer um dia, se isso se revelasse desejável, que este escrito é um empreendimento de desinformação sobre o espectáculo; ou então, o que é a mesma coisa, de desinformação em detrimento da democracia.
 
p. 63.
 
A imbecilidade crê que tudo é claro, quando a televisão mostrou uma bela imagem e a comentou com uma audaciosa mentira.
 
p. 75.
 
Há em toda a parte muitos mais loucos que outrora, mas o que é infinitamente mais cómodo é que pode falar-se disso loucamente.
 
p. 84.
 
O destino do espectáculo não é certamente acabar em despotismo esclarecido.
 
 
Guy Debord, in Comentários sobre A Sociedade do Espectáculo (1988), trad. Fernando Silva e Edmundo Calado, mobilis en mobile, 1995.

1 comentário:

Take Direto disse...

Muito bom. Cruelmente verdadeiro.