domingo, 9 de maio de 2021

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #32

 

Apresento-vos Lázaro de Tormes, filho de Tomé e de Antona, naturais de Tejares, aldeia de Salamanca. Dele sabemos o que autor anónimo do século XVI legou à posteridade. Lazarillo de Tormes, suas poucas venturas e incontáveis desventuras, há muito vem merecendo por cá atenções de tradutores distintos. A versão de Aníbal Fernandes encontra-se disponível na Sistema Solar, a de José Bento na Assírio & Alvim, mas outras foram sendo dadas à estampa ao longo dos tempos. O que houve de especial na vida de Lazarinho, minhas filhas, é o que de mais essencial vislumbramos na vida de todos quantos à face da Terra podem ser chamados de homens: fome. Nenhuma necessidade motiva a acção como a fome, deslocando-nos tanto à condição de animais selvagens como à de artistas. Vós, que graças à fortuna do meio em que nascestes nunca tivestes de passar fome, ficai sabendo quanto de indigno há na virtude quando a fome ataca alguém. Perseguido, preso e torturado, o pai de Lázaro partiu deste mundo 'inda ele era criança. Teve a mãe de se prostituir com um negro para sobreviver, até descobrir-se que os bens que este lhe trazia eram furtados ao patrão. Com pai, mãe e padrasto condenados, foi o nosso desgraçado herói encontrar desenrascanço em patrões sucessivos, qual deles pior que o outro, exploradores da miséria alheia. Um mal nunca vem só, diz o povo e não temos razões para discordar, particularmente quando calha o mal recair sobre quem já desventurado é. Eis algo que podeis conservar entre os axiomas desta vida, a miséria atrai miséria. Assim é, desde logo, porque os miseráveis tendem a ser inimigos de si mesmos, voltando-se mais facilmente uns contra os outros do que contra quem os explora. Assim é, também, por haver sempre gente disponível para colher ganhos e proveitos da fome alheia, fazendo-se patrão de quem nada tem acenando com promessas retardadas e paraísos ilusórios. Desesperando por vida melhor, os Lazarinhos deste mundo tornam-se servos sem ingenuidade nem inocência, antes com a manhosice e a esperteza que leva a patinar na avareza dos Senhores. Para chegarem a algum lado não saem do mesmo sítio, roem unhas na vã esperança de assim conseguirem matar a fome, aceitam a indigência como salário duma pobreza ainda mais funda. Tudo quanto façam para escapar dos fojos será tomado como aldrabice de trapaceiros desprevenidos, os quais se denunciam tanto por não reconhecerem o seu lugar no mundo como por desperdiçarem tempo a sonhar com lugares reservados aos outros. Estarei a ser demasiado fatalista, minhas filhas? Vede como salivam por esmolas os imigrantes que ao redor de nós chegam para apanhar pêras, matar frangos, amassar pão, colher framboesas, vede como no campo, curvados, eles são as vítimas de um chicote invisível que os açoita diariamente sob o silêncio astuto de quem com eles lucra. Quem com eles lucra? Todos nós, sim, todos quantos entre nós se calam à vileza desta economia do desamparo. A isto leva tanto a fome de uns como a ganância de outros, mas igualmente a indiferença da maioria que assobia para o lado enquanto puder aproveitar-se das fraquezas de uns e das malfeitorias dos outros. Lázaro chorou a sua desgraçada vida passada e as suas próximas mortes futuras ao serviço de cegos trapaceiros, clérigos oportunistas, escudeiros violentos, frades sovinas, buleiros intrujões, capelões hipócritas e aguazis pretensiosos. Naquele tempo eram estes os poderes que exploravam. Passados cinco séculos, não é diferente se por uns substituirdes banqueiros e por outros directores executivos, administradores e gestores, agiotas, usurários. Assim é, minhas filhas, que a lição a retirar desta Vida de Lazarinho Tormes se preserva actual como ao longo dos séculos os rochedos não perdem validade. Mais do que um destino que determina as aflições é o lucro que delas obtêm os Senhores aquilo que as perpetua entre os desgraçados. Se quiserdes livrar-vos disto, deixai de dar lucro. Eis o conselho que tenho para vos oferecer.

2 comentários:

sonia disse...

Lembro-me que há alguns anos você publicou os 100 livros recomendados às suas filhas. Muitos deles eram os meus preferidos.
Abraços do Brasil

hmbf disse...

Saúde.