domingo, 13 de junho de 2021

ANJO DA GUARDA

Há meses que não entrava numa pastelaria para tomar o pequeno-almoço. Quebrei hoje o jejum, depois de deixar a Matilde no Conservatório em Óbidos. Estacionei o carro próximo da Raul Proença e dirigi-me ao balcão da minha pastelaria preferida nas redondezas. Não direi qual para evitar publicidade não paga, actividade que muito prezo mas já me cansa. Pedi um café cheio e um pampilho. A moça de serviço volteou os olhos, como quem se coloca alerta perante ameaças terceiras, baixou a máscara à altura do queixo e sussurrou qualquer coisa que não percebi. «Desculpe, não entendi», disse-lhe. Ela tornou a voltear os olhos, inclinou-se ligeiramente na minha direcção, e movimentou lentamente os lábios como se eu fosse especialista em leitura labial. Não sou. Num gesto espontâneo, baixei a máscara para ver e ouvir melhor. Desculpei-me mais uma vez. «Devo estar a ficar surdo», comentei. Ela sorriu, muito simpaticamente, e respondeu-me soletrando um «Não estão frescos.» «Ah», exclamei com contentamento pela resolução do enigma, «os pampilhos não estão frescos». A patroa, num lugar recuado atrás do balcão, encarou subitamente comigo e com a empregada, acenou com o que me pareceu ser um esgar de desaprovação. Não augurei nada de bom para a empregada. Lamento. Passados alguns segundos de tensão entre os segmentos deste triângulo desencontrado, a moça concluiu justificando os cuidados: «Só estava a pensar na sua barriga.» Senti-me inesperadamente incomodado, não tanto pela completa ausência de perspicácia que demonstrei ou pelo olhar reprovador da patroa, mas pelos pensamentos da pobre rapariga. Não consigo imaginar o que possa ser de tormento para alguém pensar na minha barriga. Eu, há anos que me libertei de cogitações tão deprimentes. Daí que tivesse solicitado um pampilho. Não havendo deles frescos, agradeci a deferência e regressei a casa com o pequeno-almoço por tomar. Encontro-me agora mesmo a beber um chá de menta e a preparar-me para lançar mãos ao trabalho. A barriga sente-se bem, mercê do anjo da guarda das pastelarias.

1 comentário:

jpt disse...

pois, são as dores do envelhecimento, essas preocupações alheias com o nosso bem-estar