sexta-feira, 4 de junho de 2021

ELOGIO DOS TUDÓLOGOS

 


   Ansiedade e insónia, maleitas antigas que a idade e o ar dos tempos têm ajudado a mitigar. Com a idade, a gente aprende a relativizar a gravidade dos problemas. Com o ar dos tempos, cravejado de problemas, a gente vê-se na obrigação de ficar selectivos e criteriosos, usando de esperteza para encontrar remédio onde outros vislumbram aflição e motivo para angústia.

   Por via de confinamentos, emergências e calamidades, recolhido no lar, dei comigo a navegar num mar de especialistas que sobre tudo peroram e sobre nada calam. Um que apareça a concluir “não sei”, e a gente alça as orelhas como canídeo expectante. Não sabe? Como é possível? Hoje toda a gente sabe tudo. Que raio, alguém assumir um pouco que seja de ignorância onde a genialidade, ao contrário do bom senso, parece ser a coisa mais bem distribuída do mundo.

   Portanto, em terra de génios quem ignora é rei. A ignorância ressuma excepcionalidade. Apercebi-me disto, pela primeira vez, quando era livreiro, tantos os pais e as mães e os tios e as tias que me pediam sugestões para os seus meninos. Questionados sobre a idade dos petizes, lá vinha o “mas” sublinhando espantosas qualidades: 5 anos, mas muito desenvolvido para a idade; 8 anos, mas já parece que tem 15; 15 anos, mas de uma maturidade inaudita. Como podia eu saber, ou sequer imaginar, ser este um país de gente sobredotada? A gente olha à volta e não se nota, vê-se ao espelho e foge.

   «Quantos deve haver no mundo que fogem de outros porque não se vêem a si mesmos!», exclamava o bom Lazarinho de Tormes. E com razão. Quase 500 anos passados sobre as desventuras desse maltrapilho, eis-nos chegados ao Portugal dos tudólogos. São uma bênção, um conforto para a alma dos néscios e um consolo para o espírito dos estúpidos. Inda há dias, contava a um bom amigo, cozinheiro de profissão, dos efeitos benditos que fui descortinar na melhor das tisanas, a programação de tudologia disseminada por 500 canais televisivos ao dispor de precatados cidadãos. Até o Porto Canal tem os seus. Não lhes fixei o nome, que para tais fármacos as farmácias não exigem receita detalhada, mas há por lá um rapaz, que aparecia a comentar bola e agora aparece a comentar tudo, que é tiro e queda. Mal o escuto, ferro-me a dormir.

   Entre ancestrais e anciãos, os do “Eixo do Mal” poupam-me milhares em benzodiazepinas. Aurélio, Oliveira, Marques Lopes, Luís Pedro Nunes e Clara Ferreira Alves? Benza-os Deus e todos os santinhos. Não os escuto há 10 minutos, já a mulher fecha a porta da sala para não me ouvir roncar. Em bom rigor, acordo assim que os ditos se calam, as vozes dos tudólogos devem produzir um feitiço qualquer, são um poderoso soporífero pelo qual devemos sentir-nos agradecidos. Não sei se curam covid-19, embora tudo saibam acerca do tema, mas insónias curam. Sou a prova factual disso mesmo. A família não me deixa mentir. Se me queixo de sono, noites mal dormidas, buscam na box um desses programas e abandonam-me na sala, deitado na sofá, como a um viciado numa casa de ópio.

   Num destes fóruns, na SIC Radical, é suposto expurgarem-se irritações semanais. Aquilo é de uma eficácia inacreditável. Anda por lá uma Carla Hilário Quevedo que é música “new age” aos meus ouvidos, ouvi-la é como se alguém soprasse ao ouvido, muito baixinho e serenamente, delicadamente, descansa filho, descansa, vem aí soninho bom e descansadinho, tranquilo. Ela abre a boca, eu fecho os olhos. O nome do meio até lhe fica mal.

   Devo pois um sincero reconhecimento a toda essa malta do comentário universalista, os tudólogos, sábios imprescindíveis a um sono relaxado. Melatonina? “Eixo do Mal”, “Governo Sombra”, “Irritações”, “O Último Apaga a Luz” (nome mais pertinente para um programa congénere não há)... Meus queridos e impagáveis tudólogos, envio-vos daqui um abraço sincero de profunda gratidão. O sono que me causam é proporcional à simpatia que vos tenho. Muita.

 

Henrique Manuel Bento Fialho

Caldas da Rainha, 05/Maio/2021



O Palhinhas & Ca. 
colecção periódicos locais/mensais
número 70
directório colectivo: José de Matos-Cruz, Joaquim Jordão, António Viana, Álvaro Biscaia
Maio de 2021

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