quarta-feira, 15 de setembro de 2021

O que anima estes corpos que dançam se o que se ouve é o silêncio? Será a memória da música? Será o pressentimento do seu regresso? Ou outra coisa qualquer?

 


No quarto 32 da ala sul do hospital psiquiátrico a janela está aberta. O vento que entra faz a cortina esvoaçar. Uma cortina muito fina e transparente. A velha louca levanta-se da cama e estende a mão na direcção da cortina:
— Sim, concedo-lhe esta dança.

No jardim há um lago circular com um muro em pedra. O louco está debruçado, todo ao comprido, com a barriga apoiada no muro, as mãos metidas na água a tentar apanhar o peixinho vermelho de cauda longa que anda de um lado para o outro.
A enfermeira está sentada ao lado dele e pergunta:
— Porque é que queres apanhar o peixe? Deixa-o estar sossegado.
— Não é um peixe. É o meu sangue. Vê, cortei-me ao fazer a barba.
O louco retira as mãos da água e mostra a cicatriz que tem na parte interior do pulso esquerdo: um corte rectilíneo e longo, transversal às veias.
— Dói-dói, dói-dói — diz a louca que está de pé junto deles.
A louca não pára de bater com os pés no chão, sem sair do mesmo sítio.
— Tens os pés frios? — pergunta a enfermeira.
— Pés frios, coração quente — responde a louca. Não, não tenho os pés frios.
— Então porque é que estás a bater com os pés no chão?
— Porquê, porquê. Estás sempre a perguntar porquê.
— Mas podes parar de bater com os pés, não podes?
— E se paro de bater com os pés faço o quê?
— Não sei, não precisas de fazer nada.
— Tem de se fazer sempre alguma coisa. E bater com os pés é bom.
O louco tem outra vez as mãos dentro de água.
— Estava a fazer a barba, a navalha caiu e zás, cortei-me. Atei tudo muito bem atado mas outro dia quando vim aqui levar as mãos o sangue saiu todo e agora dói-me tudo por dentro.
— Dói-dói —  repete a louca.
Os olhos do louco seguem atentamente o peixinho vermelho de cauda longa.
—  É difícil apanhar o sangue porque ele foge muito depressa. Mas não vou desistir. Vou apanhar o sangue e engoli-lo. Para ficar bom.
—  Bom-bom —  diz a louca. Bater com os pés é bom.
A louca não pára de bater com os pés no chão. O ritmo sempre certo. Como um relógio.
—  Não vou parar nunca.

Entre os dedos da minha mão, as contas roliças de um terço: Ave-maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus, Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, Ámen. O terço desliza, e o polegar e indicador da minha mão direita perdem-se à conta seguinte: Ave-maria...
A complexidade do mundo reduzida a uns quantos gestos em que passo a reconhecer-me, gestos que passam a ser eu. O mundo apequenado, finito, manuseável. Nada existe para além da repetição. O mundo deixa de estar sempre a mudar, deixa de ser assustador. Preso na repetição, o mundo é eterno. Um mundo pequenino. Mundo-casa-casulo. Minimal. Repetitivo.

Dulce Maria Cardoso, in Rosas, Douda Correria, Setembro de 2017, s/p. A imagem ao alto refere-se ao espectáculo Rosas danst Rosas da coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker.

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