domingo, 24 de outubro de 2021

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #34

 

   Falemos de livros. Quando era criança, acontecia-me amiúde, como por certo já vos terá acontecido, adormecer a imaginar que os brinquedos espalhados pelo quarto adquiririam vida quando eu estivesse a dormir. Imaginava-os a fazerem as coisas que fazemos quando estamos acordados, as coisas que fazemos quando somos crianças. A brincar, a imaginar, a experimentar. Um recado a pedido da mãe? Agora, já crescido, adormeço por vezes a pensar nos livros arrumados nas estantes, em segundas e terceiras filas, amontoados em pilhas no chão, dentro de caixas e caixotes, engavetados, livros que fui acumulando ao longo da vida na esperança de que me pudessem oferecer alguma coisa. Dentre milhares, escolhi 100 para vos oferecer. Espero que pelo menos esses não morram comigo e perdurem vivos nas vossas mãos. Ocasionalmente, fecho os olhos e fico a imaginá-los com vida própria. Como os livros de Uma Noite na Biblioteca, a peça de Jean-Christophe Bailly (n. 1949) que o Fernando me ofereceu.
   Nunca fui frequentador de bibliotecas, confesso. Recorria à itinerante da Gulbenkian quando era miúdo, servia-me de pretexto para escapar à catequese. Eram umas bibliotecas com rodas, andavam de cidade em cidade transportando livros em busca de leitores. Mais tarde, o vício da leitura foi sendo acrescentado de outros vícios, tais como escrever nos livros, sublinhá-los, marcá-los, acrescentar-lhes índices próprios com referência às páginas que me são mais queridas. Por vezes, soltam-se-me palavrões e descarrego-os nas margens. Falo com os autores sem que me ouçam, chamo-lhes nomes. Nem sempre maus. As bibliotecas ainda hoje me causam ansiedade, por isso evito-as. Como não posso dar aos livros das bibliotecas a atenção que dou aos meus, afastei-me e fui fazendo a minha própria biblioteca. Uma biblioteca caótica, sem catálogos nem numerações, organizada à imagem e semelhança da minha desorganização interior.
   «Cada biblioteca, por muito que tenha havido colecção, arrumação, intenção, estende-se em torno daquilo que lhe escapa», diz Bertoli, o primeiro dos livros em forma de homem a intervir na peça de Bailly. Acho que concordo com ele, e talvez seja essa a principal mensagem a retirar desta obsessiva acumulação de páginas encadernadas, memória e tempo enclausurado entre capa e contracapa. Terão vida própria, os livros? Aproveitarão o nosso silêncio, a nossa ausência, para falarem uns com os ouros? Quando morrer o último dos homens, o que será feito dos livros? E hoje, com tantos homens por aí ocupados com milhentas tarefas, deves e haveres, contas e dívidas, de que valem os livros? «A nós, só nos resta o esquecimento, quer dizer um perfurar lento e fundo», diz Ragionello, o segundo livro em forma de homem na biblioteca nocturna.
   Que pensam vocês, minhas filhas, destas coisas? Como será a vida dos livros nas prateleiras? Pacífica? Estática? Eterna? Infinita? Turbulenta? À medida que crescemos, creio, em todos nós se amplifica o nostálgico silêncio de uma imaginação capaz de ver vida onde ela não existe. Obcecados com a realidade, os homens tendem a julgar-se sós no mundo como se não houvesse vida para lá das suas existências banais. Alegoria, o terceiro livro com voz na biblioteca, olha pela janela e vê o mundo acontecer. É ela quem afirma: «Tudo o que eles chamam real, donde vimos, e onde nunca iremos.» Eles somos nós. E a pergunta que me ocorrer é se serão os livros a não vir ao real ou se, por outro lado, passados todos estes milénios de literatura, não estaremos nós equivocados. Poderá isto a que chamamos real ser fruto da nossa imaginação? Afinal, que realidade há em dizer real? O real fala? «O que existe é só uma rede de histórias e de ilusões que se agitam num vazio em que a verdade anda errante», continua Ragionello.
   Talvez os livros também se sintam sós, talvez lhes façamos companhia quando nos amparamos neles contra a nossa solidão. Os livros lêem-se uns aos outros, o desafio que nos colocam é precisamente que adquiramos essa capacidade de também nos lermos uns aos outros. Como? Através dos livros. Um livro, minhas filhas, é o outro escancarado à nossa frente. Não o confundam com o autor, que esse é só um nome por detrás da vaidade. Escrito, publicado, disponível, o livro tem a sua vida própria, é ele o outro com o qual nos defrontaremos, é ele que nos inquire e confronta, é ele que nos provoca, é com o livro que teremos de travar a maior batalha das nossas vidas, a de nos conhecermos a nós próprios através desse encontro com o outro plasmado no livro. Escutemos Alegoria: «Vais ver, nós acabamos por nos habituar a ser apenas uma coisa finita, uma sucessão de sequências com um ponto final.» Assim são eles, assim somos nós. Um ponto final.

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