quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

ESPERAMOS A NOITE SER


A propósito de uma exposição do moçambicano João Donato, em exibição na Casa dos Barcos, Parque D. Carlos I, em Caldas da Rainha, onde podemos observar de perto várias peças com ressonâncias diversas — o título Esperamos a noite ser remete para a violência em Cabo Delgado —, recupero um poema de António Cabrita do livro-catálogo O Blue de Majika, dedicado à série Os sons da música, que consiste em recriações de instrumentos musicais.  O Makwilo, por exemplo:
 
“O Makwilo é um instrumento idiófono do tipo xilofone, assim como a já bastante conhecida Mbila (pl. Timbila), da Província de Inhambane. Este instrumento é composto por dois troncos de madeira (os troncos também podem ser de coqueiro ou de bananeira), sobre os quais assentam as teclas (“mbira” no singular) feitas de madeiras da árvore Umbila. As teclas estão presas numa das pontas com pregos de madeira e o seu tamanho e espessura variam, sendo as maiores e mais grossas as que produzem notas mais baixas, enquanto que as menores e mais finas produzem as notas altas. Na Mambira o espaço entre as teclas e o chão, funciona como caixa de ressonância. Este instrumento encontra-se nas províncias da Zambézia, Mampula, Niassa e Cabo Delgado. Nesta última , é conhecido pelo nome Dimbila. O Makwilo é tocado por duas pessoas, que podem estar uma ao lado da outra ou frente a frente, tocando uma as notas altas e a outra as notas baixas. Cada tocador usa duas baquetas com borracha nas pontas, com as quais percute as teclas. Este instrumento é normalmente tocado em conjunto com tambores e chocalhos, acompanhando canções.”

 


MAKWILO

Num grande incêndio, eu vi: os fogos galgam o rio saltando ao eixo.
Também eu tinha esse dom, por isso me conheciam como o homem dos sete instrumentos.
E de facto seduzi a minha primeira mulher com o chitende, o meu caso de amantismo associou-se ao chocalho masseve, com a mbila fiz crescer águias na boca e beijos de mulata à minha segunda; emprenhei a minha terceira depois de uma batucada que pôs três lagos de joelhos; com o trompete acariciei dos pés às axilas o bom pedaço de inferno que era a minha quarta - um relógio sem ponteiros na minha noite; com a majika fiz um blue que arrebentou as águas de todas as grávidas ao redor de dez quilómetros, pois estavam com pressa de me amar. 
Tudo isto era natural sendo eu o número um em tudo, nunca houve não há nem haverá sujeito de maiores acrobacias sexuais do que eu.
Uma vez fiz ejacular dezassete vezes consecutivas a uma professora de latim.
Hão-de saber que eu introduzi o cinema sonoro em Inhambane e em certo sentido acrescente-se, sim, sou o primeiro limpa-chaminés do país, o primeiro fabricante de escapes, o primeiro indivíduo que suspeitou da possibilidade de que a melhor dieta para os voos espaciais seria ovos de tartaruga.
De imbecil me apodavam no colégio mas eu era o primeiro aluno da turma tal como vossas excelências me vêem, apessoado - bom moço -, ladino, genial diria mesmo, - irresistível -, com uma verga de cura e padre-nosso que as colegiais adivinhavam de longe apesar de eu tratar de dissimular ao máximo.
Mas agora estou engarrafado, desde que cheguei ao Makwilo e que tenho de o tocar olhos nos olhos (eu as notas baixas ela as altas), a quatro mãos.
E quando se ama como eu a música a afinação é como um crânio sobressalente, o crânio em que ela se tornou, mobilando-me as meias notas e o silêncio.
Tomou-me. Amo-me nessa trama mas tramou-me.
E como ela pega na minha baqueta, meu deus - descem cometas aos cumes do Gurué!

António Cabrita, in O Blue de Majika, sobre peças de João Donato, Novembro de 2017, s/p. 

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