quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

UM POEMA DE NATÁLIA AGRA

 


O PASSADO É UMA CASA ABANDONADA DE ONDE NUNCA CONSEGUIMOS SAIR

Para a tia Lu, minha segunda mãe (in memoriam)

— na floresta há um monstro
e ele é muito parecido comigo

quando criança
só você me salvava dos pesadelos:

— criança silenciosa, não ouça o barulho lá de fora

hoje,
não estamos a salvo
ninguém está
ninguém abafou o fogo
ninguém descobriu a cura do fim

a criança se perde no silêncio
a chorar de verdade

                                                      (memento mori)

na confusão do incêndio,
ouvi do trovão
seu labirinto

aberto                  (   fogueira   )               nevoeiro

estou só, com as ferrugens do passado
você não mais é em mim aquele lugar no mundo
o quarto está escuro

a criança se perde no silêncio
e encara a verdade

— na floresta há um monstro
e ele é muito parecido comigo


Natália Agra, in Noite de São João, com prefácio de Simone Brantes e posfácio de Tarso de Melo, Douda Correria, Outubro de 2020, s/p.

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