Escrevo a 23 de Janeiro, no dia em que 315 mil eleitores poderão exercer o seu direito de voto antecipadamente. A campanha ainda não terminou. Para estes 315 mil o dia de reflexão parece não ter a mesma relevância que tem para os restantes eleitores, aqueles que daqui a 7 dias poderão votar com direito a pausa para reflectir. Entretanto, por aqui, vem-se fazendo de cada dia um dia de reflexão. Por isso mesmo há muito se me meteram na cabeça dois sentimentos de urgência: a urgência da acção — reflectida, claro — e a urgência do voto — esclarecido, obviamente.
Vamos à acção.
O escritor Mário de Carvalho, logo no início de «Fantasia para dois coronéis e uma piscina», fala-nos de uma «pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice». Fala-se muito neste país, de facto, e ainda bem, mas temo que, por se falar tanto, se reflicta tão pouco e se actue quase nada. Ou então estarei enganado, há um novo modo de reflexão a que chamaremos reflexão-bucal-actuante, aquela que advém do paleio e alimenta fazedores de opinião pagos luxuosamente, com mais direito a tempo e antena para debater debates do que os próprios líderes políticos para debaterem entre si publicamente.
A isto acrescem a segunda, terceira e quarta divisões do género, disseminadas por jornais que ninguém lê e redes sociais onde tudo se consome como sopa instantânea. É o tipo de discurso que encontramos nas redes, mas também nas ruas quando se fazem campanhas. Então ouvimos: são todos iguais, querem é tacho; ou, em versão gourmet, e com sentido de humor à mistura, aquele rumorejar pseudoanarquista segundo o qual a mediocridade assaltou o país tomando conta dos partidos políticos. Dantes, os anarquistas metiam bombas. Agora, falam. Também eles se terão acomodado às circunstâncias burguesas da democracia liberal.
Temos então que, para essa gente que fala, fala, fala, fala, mas não se vê a fazer nada de concreto em prol da democracia participativa, o mal está nos partidos, que, por perderem tempo a repetir as mesmas ideias, acabam por afastar os eleitores, pobrezinhos, ansiosos de ideias novas. É sinal dos tempos, este anseio por coisas novas. Sucede que em política nada é novo. Os gregos inventaram o que havia para inventar, depois foi só ir adaptando às circunstâncias os modos de fazer.
O liberalismo, por exemplo, que agora aparece por cá como grande novidade, é tão velho como a ideia de contrato social. Vem do século XVII. Adaptaram-se aos tempos, defendendo para Portugal modelos para a educação e para a saúde que consistem numa ideia base sedutora, a possibilidade de cada um escolher onde quer ser servido. Em não querendo ser servido no público, poderá sê-lo no privado. Perguntamos como, se não tiver dinheiro para pagar? Pagando o Estado, respondem eles. Percebemos bem no que consiste este liberalismo pós-moderno ao ouvirmos falar em 25 mil milhões de euros injectados pelo Estado no sistema financeiro. Entretanto a conta já deve ter aumentado.
Não me parece, portanto, que o desinteresse pela política e a desconfiança motivada pelos partidos esteja ou deixe de estar na mensagem, mas sim num processo de saturação alimentado tanto pela ideia de corrupção do poder, como pelo sentimento de impotência face às situações vividas. A manifestação “Que se lixe a troika!”, em Setembro de 2012, terá sido um dos últimos momentos de superação deste sentimento de impotência. Quanto à corrupção do poder, sucessivos casos judiciais, envolvendo políticos e empresários com ligações à política, podiam ser um sinal de vigilância do poder, não fosse o caso de a justiça ser morosa e, tantas vezes, inconsequente.
A inacção autojustifica-se. O que está em causa, na verdade, é um comodismo atroz. É, sem dúvida, incomodativo disponibilizar tempo das nossas vidas para reuniões, visitas a locais estratégicos, contacto com a população, ouvir para diagnosticar, promoção de encontros e debates, distribuição de folhetos informativos, entre outras acções de pré-campanha e de campanha que são exigentes e mais ou menos fastidiosas. Com a agravante do estigma, sempre tão preocupante na cabeça de quem anda neste mundo mais para ser querido do que indesejado. Preferível é ficar em casa a remoer protestos, escudando a inacção por detrás de um descontentamento que terá as suas razões de ser, mas, é bom lembrá-lo, também terá as suas consequências. Uma delas poderá ser isto: o regresso ao poder, no próximo dia 31 de Janeiro, daqueles contra os quais nos manifestámos massivamente há 10 anos. Esses e outros, ainda piores do que esses, que, entretanto, perderam a vergonha e defendem coisas inimagináveis como a mercantilização da saúde ou outras, intoleráveis, como a prisão perpétua e a castração química.
Vamos à urgência do voto?
Pois muito bem, não vale a pena perder tempo com mais tagarelice, «numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros». Cito, mais uma vez, o escritor Mário de Carvalho. O voto é a ferramenta democrática que nos resta. Para quê? Desde logo, para combater aqueles que se opõem à democracia.
Mas há
quem se oponha à democracia? Há.
Há, de facto, quem sonhe com «uma nova república» e faça disso programa, mas há também, por mais tonto que isso possa parecer, quem, dizendo-se democrata, não coloque de parte a hipótese de se aliar a quem claramente o não é só para chegar ao poder. O que está em causa nestas legislativas de 2022, esta é uma convicção à qual cheguei sem carecer de muitas horas de reflexão, é provavelmente o maior desafio com que nos deparámos nestes 47 anos de regime democrático: legitimamos ou não o gangsterismo político, nada fazendo para impedir que a direita se una à direita gangster, aquela que dizem extrema e se prepara para assentar na AR mais uns tantos deputados acerca dos quais tão pouco nos é dado ouvir, pois todos eles se escudam por detrás da popularidade do seu grande líder, o tagarela dos tagarelas?
O meu voto não contribuirá para que a passadeira vermelha seja estendida à passagem desta gente. Não votar é desbravar caminho para que assaltem o capitólio e no seu interior cantem vitória contra a Constituição de Abril. Se ainda não sentiram a urgência da acção, que pelo menos não vos falte a urgência do voto. É o meu mais sincero desejo.
Henrique Manuel Bento Fialho
23 de Janeiro de 2022
Há, de facto, quem sonhe com «uma nova república» e faça disso programa, mas há também, por mais tonto que isso possa parecer, quem, dizendo-se democrata, não coloque de parte a hipótese de se aliar a quem claramente o não é só para chegar ao poder. O que está em causa nestas legislativas de 2022, esta é uma convicção à qual cheguei sem carecer de muitas horas de reflexão, é provavelmente o maior desafio com que nos deparámos nestes 47 anos de regime democrático: legitimamos ou não o gangsterismo político, nada fazendo para impedir que a direita se una à direita gangster, aquela que dizem extrema e se prepara para assentar na AR mais uns tantos deputados acerca dos quais tão pouco nos é dado ouvir, pois todos eles se escudam por detrás da popularidade do seu grande líder, o tagarela dos tagarelas?
O meu voto não contribuirá para que a passadeira vermelha seja estendida à passagem desta gente. Não votar é desbravar caminho para que assaltem o capitólio e no seu interior cantem vitória contra a Constituição de Abril. Se ainda não sentiram a urgência da acção, que pelo menos não vos falte a urgência do voto. É o meu mais sincero desejo.
23 de Janeiro de 2022
1 comentário:
Democracia??? Umas vezes fantasia outras ficção. A democracia não existe na realidade. Se calhar sou negacionista? Abraço.
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