terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

[O ESPELHO REFLECTE DO LADO ESPELHADO]

 


O espelho reflecte do lado espelhado
mas o contra-lado é escuro e opaco.

Um espelho perfeito devia reflectir e
ser transparente, em simultâneo.

Assim, estamos diante do espelho e só
vemos o que os outros vêem de nós:

a ilusão, óptica ou não, de um corpo,
de um rosto elíptico, em falsa imagem,

talvez também do nosso lado espelhado;
que o lado opaco se esconde na escuridão.

O inventor do tal espelho completo
morreria, de certo, após a invenção.

Luísa Freire (n. 1933), in Imagens - uma antologia de inéditos (Companhia das Ilhas, Janeiro de 2022). «Creio que quem lê os poemas de Luísa Freire não consegue imaginar a sua idade. Mesmo sabendo que estamos perante uma «poesia de expressão interior» (expressão da autora), o vocativo destes poemas é o mundo exterior, e esses questionamentos sobre o mundo não são, aparentemente, de quem se despede da vida, sua velha conhecida, mas serão mais naturais nas perguntas de alguém que começa agora a pensá-la e a questioná-la. Assim se prova que o poeta não tem idade ou identidade e que o texto que escreve é o mais importante - é nele que reside, é ele que o habita. (...) Há na poesia de Luísa Freire uma autêntica e rara ligação ao Oriente (lembramos que é uma das poucas grandes tradutoras de haiku em português), que se liga a uma tentação aforística sempre presente. Estruturalmente, o poema vai-se desenvolvendo em premissas que depois têm um fim conclusivo, por vezes imperativo, como uma exclamação ao estilo de Bashô que une as duas ideias formuladas anteriormente.» (Ricardo Marques, no prefácio ao livro supracitado). 

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