quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

OVERSTRETCHIN (2002)


 

Era uma vez um músico de rua que ficou no desemprego. Foi quando se acabaram as ruas e as pessoas nelas. O mundo inteiro fechado em casa, a ver filmes e séries da Netflix, consumindo directos do Instagram como quem vai ao teatro (extinguiram-se), mandando vir almoço e jantar pelos Chefs em Casa, plataforma de food delivery, assim mesmo, em inglês, por ser a língua que mais convém a quem se fecha em casa a correr em passadeiras eléctricas ao som de Ian Simmonds, As ruas morreram. E as pessoas nelas. Sobram vias alcatroadas por onde circulam carrinhas apressadas e estafetas desorientados ao serviço de strat-ups espanholas. Deve ter sido ontem, um pouco antes de amanhã, que o último músico de rua pegou no saxofone e escolheu uma esquina onde aterrar o boné vazio. Nem uma moeda, apesar dos solos encantadores de melgas e de mosquitos. Uma borboleta também por ali passou, por engano. Era uma música inaudita a que ele produzia, circulando como pólenes por vielas vazias e avenidas despidas de carne. Dentro dos apartamentos, com as janelas fechadas, calafetadas, agarradas a smartphones, as pessoas lactantes cuidavam dos filhos copiando a preceito as instruções de tutoriais elaborados para o efeito. Que música era aquela? Que bater no coração que abocanha o peito de dentro para fora? De dentro para fora?

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