quinta-feira, 24 de março de 2022

2. ÚLTIMA CEIA

 


Tenho esperança no que o murmúrio do silêncio me
traz, na procura de um nome que não seja rumor,
mas árvore, que não seja barro, mas estilete...

Tenho essa esperança ignorada, assim como o
desejo, de me sentar à mesa e servir de braços
abertos todos os que vêm das terras esventradas das
sírias; encher de água de rosas o lava-pés de cobre,
há muito areado pelas mulheres da casa, e lavar os
pés e aliviar os olhos cansados e emudecidos dos
escravos vindos da geografia inaudita do meridiano
das fronteiras de todas as líbias; nesta minha mesa de 
castanheiro, coberta com uma toalha de linho
branco, e recheada de pão ázimo, requeijão e
almece, mel, orégãos e sementes de sésamo, servir
as bocas esfomeadas do caminhar humano vindas dos
lugares desconhecidos das etiópias.

Espero não me deixar adormecer, estarrecido, no
sonho em que invadem, afogados, os corpos
fossilizados nas margens de uma enseada
reinventada.


Miguel Rego, in Mar de um tempo sem âncoras, volta d'mar, Novembro de 2018, s/p.

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