O texto que a seguir se transcreve foi partilhado
durante a apresentação do livro Contas de
Cabeça (Companhia das Ilhas, Janeiro de 2022), de Leonardo (n. 1993). Não
conhecia pessoalmente o autor até à data de apresentação da obra, nem sequer
havíamos trocados mais do que uma ou duas mensagens meramente circunstanciais
nas redes sociais. Foi Carlos Alberto Machado quem me convidou a fazer a
apresentação. Pedi que me enviasse o volume para poder lê-lo antes de lhe dar
uma resposta. O PDF chegou-me, li-o uma primeira vez e aceitei de imediato apresentá-lo
com uma leitura. Esta:
«A poesia não importa», escreveu T. S. Eliot (1888-1965) no segundo dos Quatro Quartetos (East Coker). Tenho pensado neste verso, neste fragmento de verso,
tentando compreendê-lo à luz dos acontecimentos mais recentes. A guerra, quando
bate à porta, e a guerra está a bater-nos com estrondo à porta, tem esta
capacidade de tudo tornar relativo. De facto, que importância pode a poesia ter
neste momento pelo qual passamos, ainda protegidos pela distância geográfica,
mas já diariamente expostos a bombardeamentos de imagens tingidas de sangue e
de ruína? A importância de um lenitivo, talvez, que distraia do verdadeiramente
importante: as pessoas.
Investimos pouco nas pessoas, damos pouco de nós aos outros. Os outros? Os outros são tanto o inferno como podem ser a única experiência possível de paraíso na Terra. São um inferno quando nos limitam e cerceiam os caminhos, mas são uma bênção quando nos libertam abrindo janelas. Sobretudo quando nos libertam de nós mesmos, do egoísmo que nos cerca e do atavismo que nos corrompe. Um homem está sempre metido dentro de si próprio, é verdade. Ninguém logra, por mais que tente e se desunhe, invadir a mente do outro para aí plantar algo de belo, como nessa imagem de capa que ilustra este livro, Contas de Cabeça, parece ter sido plantado algo de belo.
Deus, diz-se no Génesis, «modelou o homem com barro da terra», supondo porventura que onde lhe nascem fartas cabeleiras pudessem desabrochar frondosas plantas. Foi erro de design. Seria tudo mais bonito se assim fosse, mas desconfio que assim não seja. Extraordinário é constatar como nesse extremo de um corpo humano podem germinar ideias tão destrutivas quão criativas.
para
sua
segurança
localize
em cada
paraíso
as saídas de emergência
A advertência vai ao fundo da questão: o paraíso não é um lugar seguro.
Adão e Eva bem o souberam, expulsos que foram do paraíso. Curiosamente, também
os poetas cedo ficaram a sabê-lo, expulsos que foram da cidade ideal. Adão e
Eva, porque provaram o fruto do conhecimento; os poetas, porque a sua linguagem
era um empecilho nos caminhos da verdade.
Haverá paraíso? Haverá verdade?
A guerra bateu-nos à porta e eu lembrei-me de um texto de Bertrand Russell datado de 1960, posterior em cinco anos ao célebre Manifesto Russell-Einstein. A Einstein atribui-se a invenção da bomba atómica, o que é manifestamente exagerado. Na verdade, e se é verdade que pretendemos, ele era um pacifista com uma mente brilhante que apenas desbravou o terreno da ciência para o estudo da energia nuclear. A II Grande Guerra precipitou os acontecimentos, a bomba foi inventada e duas foram largadas sobre o Japão. Fotografias fascinantes desse facto aterrador ficaram como prova daquilo a que o homem pode chegar, da sua capacidade radical para, num segundo, fazer desaparecer o que podia ser um paraíso não o tivéssemos nós transformado num inferno.
Nós quem?
Dez anos passados sobre o termo da II Grande Guerra, Einstein assinou o manifesto com Russell chamando atenção para o seguinte: «A humanidade encontra-se perante uma escolha clara: ou adquirimos um pouco de sensatez, ou iremos todos perecer. Uma reviravolta do pensamento político terá que acontecer para que seja evitado o desastre final.» Não prevaleceu a sensatez nem houve reviravolta. Adão e Eva continuaram fora do paraíso, os poetas fora da cidade ideal. Russell escreveu, então, um texto em que procurava responder a esta dúvida inquietante: É possível abolir a guerra? Sugeria, entre outras coisas, a «abolição das explosões experimentais», ao mesmo tempo que expunha conclusões desoladoras: «O homem elevou-se até atingir o presente domínio sobre muitos dos perigos externos, mas ainda não ascendeu ao ponto de dominar os perigos internos gerados pelas suas próprias paixões: o ódio, a inveja, o orgulho desmedido.»
Aqui estamos, em 2022, nos loucos anos 20 do século XXI, depois de a poesia se ter tornado impossível, com um livro de um poeta que não me levará a mal chamar-lhe jovem — os meus 47 legitimam a referência —, interrogando a importância da poesia neste mundo em que se continua a discutir a “limpeza” e sustentabilidade da energia nuclear. A interrogação é instigada não só pelo ambiente em que o livro nos surge, não só por agora o havermos lido, mas precisamente porque no seu interior encontramos versos que nos deslocam para este plano da dúvida. Dúvida, desde logo, acerca do papel de Deus nesta brincadeira que é a vida.
O primeiro poema do livro é logo uma espécie de aviso como esses que se afixam à entrada dos edifícios:
deus partiu-se aos cacos
enquanto armava o enredo
esta
distância de simulacros
é o nosso quarto de brinquedos
É um poema elíptico, como praticamente todos os deste livro, se por
elíptico entendermos a ausência de algo que torne evidente a ligação entre um
Deus desfeito em cacos, um Deus que partiu o caco a rir enquanto nos moldou, um
Deus de barro, e esses simulacros com que brincamos como crianças com os seus
brinquedos. Deuses de brincar, portanto, risíveis, certamente, e eventualmente
anódinos como bonecas de trapos ou talvez modeladores como soldadinhos de
chumbo.
Os meus deuses, quando era criança, tinham nomes de cowboys e de índios. Foram os únicos que conheci. Há dias, vi na televisão um miúdo a ser instruído sobre o uso de metralhadoras. Lembrei-me de uma que tive, feita de madeira, desenhada e serrada pelo meu pai, que andou na guerra por África e de lá regressou odiando guerras. Quedei em lágrimas, juro-vos, a desejar que aquela criança pudesse ter nas mãos uma espingarda como a que eu tive, que não era grande espingarda, que era de madeira. E pensei nas minhas filhas: como explicar-lhes agora que ainda antes de Deus ter criado o mundo, já o mundo era um perigo?
Os poemas do Leonardo levam-me a cogitar nestas coisas, nas colisões (palavra dele) e na asfixia (outra palavra dele) e nessas gramáticas de ódio que urge devorar sob pena de por elas sermos devorados. Ele diz:
talho
somos todos
cá dentro ou do avesso
(…)
e aí já não é Deus quem está em causa,
mas o homem, esse mesmo homem a quem uns chamam criatura, a quem outros imputam
a criação dos deuses. A mim parece-me existir uma desconfiança nestes poemas,
pelo menos uma cautela, relativamente aos méritos da humanidade. É uma
desconfiança anterior à própria manifestação intuitiva ou reflexiva dos poemas.
São curtos como golpes e, como disse, elípticos, mas carregados de sentenças
dilacerantes, incisivas. Como esta:
(…)
tenho medo de crianças
a inocência mata
São versos que parecem derivar de uma inquietação reflectida acerca do
mundo e do homem, do lugar do homem no mundo e, antes de mais, do lugar do
mundo no homem. Poemas que provêm desse ponto ténue em que a experiência se
cruza com o pensamento impelindo à escrita como uma misteriosa expressão das
nossas angústias mais íntimas.
Que quererei eu dizer com isto, o lugar do mundo no homem?
Para vos ser honesto, não sei bem. Parece-me, no entanto, fazer sentido. Então pondero que o lugar do mundo no homem talvez possa ser o modo como, cada um de nós, pela sua experiência individual, vai sendo moldado pelo mundo. Não se trata de assimilar a realidade, mas de por ela sermos assimilados. Talvez a realidade seja, então, o verdadeiro e único Deus que nos modela como barro da terra.
Alguns destes poemas recorrem ao verbo haver para enunciarem a realidade. O que há na realidade? «Há uma ave«, «há / essa ventania de transeuntes / que dobra as esquinas como se fosse / o peso íntimo / dos sinos», «há acrobatas que a fazer o pino / tiram a senha com os pés»… E o poeta visita o mundo por motivos turísticos, testemunhando e denunciando, já não a asfixia, mas o «sufoco nativo». Vai dar ao mesmo. Expulso do paraíso e da cidade ideal — por onde andará ela? onde terá siro erigida? — o poeta vive fora do mundo, visita-o como turista, por curiosidade, para depois regressar à sua solidão golpeando a agitação das multidões com o amor que foi expulso do paraíso e a beleza que foi expulsa da cidade ideal.
Parece-me, sem dúvida, uma excelente proposta, esta de evitar as multidões. Revejo-me nesse isolamento e no distanciamento que insinua, ainda que possa ser mais irónico do que genuíno. O poeta, afinal, é um fingidor, estamos presos a isso, quer queiramos, quer não, pois tudo quanto de nós expomos fica sujeito à interpretação de terceiros. É a interpretação quem dita as regras. Naquele que interpreta somos já qualquer coisa diferente daquela que somos verdadeiramente e nem nós sabemos exactamente o que é. Porque estamos sempre em construção e por isso escrevemos, tentando descobrir quem e o que somos.
Julgo que esta poesia vive desse exercício de autodescoberta, em busca de um «lugar / onde o vácuo foi útero». São versos do Leonardo, e eu, que fora deles os observo e interpreto, julgo que esse lugar onde o vácuo foi útero poderá ser, não poderá deixar de ser, o princípio de tudo quanto passamos a vida a procurar. O princípio de tudo, um vácuo. Para os antigos, para aqueles que ainda cultivavam uma ligação sagrada ao solo entretanto perdida, substituída pela exploração intensiva desse mesmo solo, esse vácuo era a semente, morte lançada à terra que da terra brotaria transformada em espiga, tal como a planta aberta no crânio exibido na capa deste livro. Essa semente de tudo, anterior ao corpo, anterior à mente, esse princípio da vida tem um nome: morte. Este é o paradoxo com o qual temos de aprender a viver, a vida é, de facto, uma aprendizagem da morte. Disse o poeta que não queria poetas na cidade ideal.
Este livro, no percurso que propõe desde uma ideia fragmentária de Deus até à afirmação do sujeito poético enquanto «solidão desta gente toda» — o poeta carrega às costas o peso da humanidade inteira, ou, como dizia Drummond de Andrade, os ombros suportam o mundo —, tem essa marca da morte a sinalizar o ridículo e o absurdo das despesas com que hipotecamos a existência. E olhem só a coincidência. Quando a guerra me bateu com estrondo à porta, peguei num livro de um poeta ucraniano chamado Adam Zagajewski (1945-2021) e li este pequeno poema:
O PARDAL MORTO
De
todas as coisas
a menos extraordinária é o pardal morto
no seu sobretudo cinzento de penas.
Até o marco militar parece
um príncipe da vida quando comparado
com o pardal morto.
Rodeiam-no as moscas,
atentas como estudantes de anatomia.
Não é o cadáver quem me toca mais neste poema, presumindo já que esteja em
paz. O que me toca mais neste poema é a imagem das moscas em torno do cadáver.
«Atentas como estudantes de anatomia», diz o último verso, reforçando com a
comparação a curiosidade mórbida daqueles que observam a morte. Há um poema no
livro de Leonardo — dois, para sermos exactos, porque muitos destes poemas
ligam-se pela repetição de imagens que vão sugerindo um movimento, uma
organização, uma coerência — que me remete para o poema de Zagajewski. Este:
mesmo
de cara
à vista
nenhum corpo
tem lado
de fora
depois
do banquete
as moscas por todos
dividem o seu canto
são a ópera do povo
não
fazem
destrinça
entre mortos
Esta sinfonia reaparece no poema seguinte, com a primeira pessoa do
plural a ser usada como forma de enunciação de um todo definidor da natureza
humana:
(…)
somos o elenco de crua poeira dói-nos
uma inocência que nem nos pertence
das nossas enubladas carcaças
e inflamáveis detritos
levanta-se uma insanável
sinfonia
A esta condição nos reduz, se assim posso dizê-lo, a poesia de Leonardo,
enquanto faz Contas de Cabeça sobre a
hipótese de um lugar de paz e de solidão que nos proteja do mundo.
Primeiro, a pandemia. E este livro, sem que se note claramente, há-de também ser, em parte, resultado dessa experiência. Agora a guerra.
Talvez a poesia possa ser esse lugar de paz e de solidão que nos protege do mundo e das suas causas insalubres, das suas certezas tóxicas, do ódio, da inveja, do orgulho desmedido que Russell acusava em 1960 como um mal de que não nos livramos. Digo a poesia, não os poetas. Estes continuarão eternamente em guerra, uns com os outros e todos consigo mesmos, movidos por razões e uma ambição que só eles saberão explicar. As minhas são tão simples quanto os votos de uma miss Caldas da Rainha, de barbas brancas e com 90Kg de carne e osso: saúde a todos e paz no mundo. Acrescento, já agora: que a poesia continue a fazer-se, vivida, escrita, seja pelo Leonardo, seja por outros, seja por quem à poesia pretenda juntar-se.
Henrique Manuel Bento Fialho
03/Março/2022
Investimos pouco nas pessoas, damos pouco de nós aos outros. Os outros? Os outros são tanto o inferno como podem ser a única experiência possível de paraíso na Terra. São um inferno quando nos limitam e cerceiam os caminhos, mas são uma bênção quando nos libertam abrindo janelas. Sobretudo quando nos libertam de nós mesmos, do egoísmo que nos cerca e do atavismo que nos corrompe. Um homem está sempre metido dentro de si próprio, é verdade. Ninguém logra, por mais que tente e se desunhe, invadir a mente do outro para aí plantar algo de belo, como nessa imagem de capa que ilustra este livro, Contas de Cabeça, parece ter sido plantado algo de belo.
Deus, diz-se no Génesis, «modelou o homem com barro da terra», supondo porventura que onde lhe nascem fartas cabeleiras pudessem desabrochar frondosas plantas. Foi erro de design. Seria tudo mais bonito se assim fosse, mas desconfio que assim não seja. Extraordinário é constatar como nesse extremo de um corpo humano podem germinar ideias tão destrutivas quão criativas.
sua
segurança
localize
em cada
paraíso
as saídas de emergência
Haverá paraíso? Haverá verdade?
A guerra bateu-nos à porta e eu lembrei-me de um texto de Bertrand Russell datado de 1960, posterior em cinco anos ao célebre Manifesto Russell-Einstein. A Einstein atribui-se a invenção da bomba atómica, o que é manifestamente exagerado. Na verdade, e se é verdade que pretendemos, ele era um pacifista com uma mente brilhante que apenas desbravou o terreno da ciência para o estudo da energia nuclear. A II Grande Guerra precipitou os acontecimentos, a bomba foi inventada e duas foram largadas sobre o Japão. Fotografias fascinantes desse facto aterrador ficaram como prova daquilo a que o homem pode chegar, da sua capacidade radical para, num segundo, fazer desaparecer o que podia ser um paraíso não o tivéssemos nós transformado num inferno.
Nós quem?
Dez anos passados sobre o termo da II Grande Guerra, Einstein assinou o manifesto com Russell chamando atenção para o seguinte: «A humanidade encontra-se perante uma escolha clara: ou adquirimos um pouco de sensatez, ou iremos todos perecer. Uma reviravolta do pensamento político terá que acontecer para que seja evitado o desastre final.» Não prevaleceu a sensatez nem houve reviravolta. Adão e Eva continuaram fora do paraíso, os poetas fora da cidade ideal. Russell escreveu, então, um texto em que procurava responder a esta dúvida inquietante: É possível abolir a guerra? Sugeria, entre outras coisas, a «abolição das explosões experimentais», ao mesmo tempo que expunha conclusões desoladoras: «O homem elevou-se até atingir o presente domínio sobre muitos dos perigos externos, mas ainda não ascendeu ao ponto de dominar os perigos internos gerados pelas suas próprias paixões: o ódio, a inveja, o orgulho desmedido.»
Aqui estamos, em 2022, nos loucos anos 20 do século XXI, depois de a poesia se ter tornado impossível, com um livro de um poeta que não me levará a mal chamar-lhe jovem — os meus 47 legitimam a referência —, interrogando a importância da poesia neste mundo em que se continua a discutir a “limpeza” e sustentabilidade da energia nuclear. A interrogação é instigada não só pelo ambiente em que o livro nos surge, não só por agora o havermos lido, mas precisamente porque no seu interior encontramos versos que nos deslocam para este plano da dúvida. Dúvida, desde logo, acerca do papel de Deus nesta brincadeira que é a vida.
O primeiro poema do livro é logo uma espécie de aviso como esses que se afixam à entrada dos edifícios:
deus partiu-se aos cacos
enquanto armava o enredo
é o nosso quarto de brinquedos
Os meus deuses, quando era criança, tinham nomes de cowboys e de índios. Foram os únicos que conheci. Há dias, vi na televisão um miúdo a ser instruído sobre o uso de metralhadoras. Lembrei-me de uma que tive, feita de madeira, desenhada e serrada pelo meu pai, que andou na guerra por África e de lá regressou odiando guerras. Quedei em lágrimas, juro-vos, a desejar que aquela criança pudesse ter nas mãos uma espingarda como a que eu tive, que não era grande espingarda, que era de madeira. E pensei nas minhas filhas: como explicar-lhes agora que ainda antes de Deus ter criado o mundo, já o mundo era um perigo?
Os poemas do Leonardo levam-me a cogitar nestas coisas, nas colisões (palavra dele) e na asfixia (outra palavra dele) e nessas gramáticas de ódio que urge devorar sob pena de por elas sermos devorados. Ele diz:
cá dentro ou do avesso
(…)
tenho medo de crianças
a inocência mata
Que quererei eu dizer com isto, o lugar do mundo no homem?
Para vos ser honesto, não sei bem. Parece-me, no entanto, fazer sentido. Então pondero que o lugar do mundo no homem talvez possa ser o modo como, cada um de nós, pela sua experiência individual, vai sendo moldado pelo mundo. Não se trata de assimilar a realidade, mas de por ela sermos assimilados. Talvez a realidade seja, então, o verdadeiro e único Deus que nos modela como barro da terra.
Alguns destes poemas recorrem ao verbo haver para enunciarem a realidade. O que há na realidade? «Há uma ave«, «há / essa ventania de transeuntes / que dobra as esquinas como se fosse / o peso íntimo / dos sinos», «há acrobatas que a fazer o pino / tiram a senha com os pés»… E o poeta visita o mundo por motivos turísticos, testemunhando e denunciando, já não a asfixia, mas o «sufoco nativo». Vai dar ao mesmo. Expulso do paraíso e da cidade ideal — por onde andará ela? onde terá siro erigida? — o poeta vive fora do mundo, visita-o como turista, por curiosidade, para depois regressar à sua solidão golpeando a agitação das multidões com o amor que foi expulso do paraíso e a beleza que foi expulsa da cidade ideal.
Parece-me, sem dúvida, uma excelente proposta, esta de evitar as multidões. Revejo-me nesse isolamento e no distanciamento que insinua, ainda que possa ser mais irónico do que genuíno. O poeta, afinal, é um fingidor, estamos presos a isso, quer queiramos, quer não, pois tudo quanto de nós expomos fica sujeito à interpretação de terceiros. É a interpretação quem dita as regras. Naquele que interpreta somos já qualquer coisa diferente daquela que somos verdadeiramente e nem nós sabemos exactamente o que é. Porque estamos sempre em construção e por isso escrevemos, tentando descobrir quem e o que somos.
Julgo que esta poesia vive desse exercício de autodescoberta, em busca de um «lugar / onde o vácuo foi útero». São versos do Leonardo, e eu, que fora deles os observo e interpreto, julgo que esse lugar onde o vácuo foi útero poderá ser, não poderá deixar de ser, o princípio de tudo quanto passamos a vida a procurar. O princípio de tudo, um vácuo. Para os antigos, para aqueles que ainda cultivavam uma ligação sagrada ao solo entretanto perdida, substituída pela exploração intensiva desse mesmo solo, esse vácuo era a semente, morte lançada à terra que da terra brotaria transformada em espiga, tal como a planta aberta no crânio exibido na capa deste livro. Essa semente de tudo, anterior ao corpo, anterior à mente, esse princípio da vida tem um nome: morte. Este é o paradoxo com o qual temos de aprender a viver, a vida é, de facto, uma aprendizagem da morte. Disse o poeta que não queria poetas na cidade ideal.
Este livro, no percurso que propõe desde uma ideia fragmentária de Deus até à afirmação do sujeito poético enquanto «solidão desta gente toda» — o poeta carrega às costas o peso da humanidade inteira, ou, como dizia Drummond de Andrade, os ombros suportam o mundo —, tem essa marca da morte a sinalizar o ridículo e o absurdo das despesas com que hipotecamos a existência. E olhem só a coincidência. Quando a guerra me bateu com estrondo à porta, peguei num livro de um poeta ucraniano chamado Adam Zagajewski (1945-2021) e li este pequeno poema:
a menos extraordinária é o pardal morto
no seu sobretudo cinzento de penas.
Até o marco militar parece
um príncipe da vida quando comparado
com o pardal morto.
Rodeiam-no as moscas,
atentas como estudantes de anatomia.
à vista
nenhum corpo
tem lado
de fora
as moscas por todos
dividem o seu canto
são a ópera do povo
destrinça
entre mortos
somos o elenco de crua poeira dói-nos
uma inocência que nem nos pertence
das nossas enubladas carcaças
e inflamáveis detritos
levanta-se uma insanável
sinfonia
Primeiro, a pandemia. E este livro, sem que se note claramente, há-de também ser, em parte, resultado dessa experiência. Agora a guerra.
Talvez a poesia possa ser esse lugar de paz e de solidão que nos protege do mundo e das suas causas insalubres, das suas certezas tóxicas, do ódio, da inveja, do orgulho desmedido que Russell acusava em 1960 como um mal de que não nos livramos. Digo a poesia, não os poetas. Estes continuarão eternamente em guerra, uns com os outros e todos consigo mesmos, movidos por razões e uma ambição que só eles saberão explicar. As minhas são tão simples quanto os votos de uma miss Caldas da Rainha, de barbas brancas e com 90Kg de carne e osso: saúde a todos e paz no mundo. Acrescento, já agora: que a poesia continue a fazer-se, vivida, escrita, seja pelo Leonardo, seja por outros, seja por quem à poesia pretenda juntar-se.
03/Março/2022
Sem comentários:
Enviar um comentário