A finalizar «O Marinheiro — drama estático
em um quadro», publicado em Orpheu 1 no primeiro trimestre de 1915, Fernando
Pessoa colocou uma data: 11/12. Outubro, 1913. É uma data anterior a 8 de Março
de 1914, segundo o autor de «Hora absurda»: «o dia triunfal da minha vida».
Sabemos hoje que esse dia assinalou a epifania do edifício heteronómico. Alberto
Caeiro liberta Ricardo Reis e Álvaro de Campos, heterónimos que, no dizer de
Richard Zenith, são mais do que meros artifícios literários, são antes «um fenómeno
enraizado na psicologia do autor». A expressão drama em gente é do próprio
Fernando Pessoa, que lhe acrescenta «drama em gente, em vez de em actos». Para
estas personagens, mais do que um nome, ele inventou uma existência,
atribuindo-lhes datas de nascimento e de morte, profissões, descrevendo-lhes os
traços fisionómicos. Daí a tentação de as não ver apenas enquanto personagens,
mas, mais do que isso, como personalidades. Sucede que estas personalidades não
deixam de ser personagens, na medida em que toda a obra de Fernando Pessoa
assenta nesse princípio básico do poeta dramático: «O ponto central da minha
personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho continuamente,
em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do
dramaturgo».
Fixemo-nos na despersonalização do dramaturgo. Por ela entender-se-á um desdobramento da personalidade, uma implosão do eu em outros. Para a psicologia seria qualquer coisa como um transtorno dissociativo de identidade, mas para quem cria é mais do que quanto a psicologia almeja alcançar. É o ser em conflito consigo mesmo, uma deslocação do pensamento para o que se lhe opõe, é um exercício magistral de crítica interna, a possibilidade de se afirmar uma coisa e o seu contrário projectando num só as mesas redondas da realidade (tantas vezes mais unânimes do que o desejável, quase sempre timidamente em busca de consensos podres sem interesse algum). Neste sentido, as críticas de Álvaro de Campos a Fernando Pessoa têm muito mais interesse, pela acutilância do primeiro face ao segundo que o inventou, têm muito mais interesse, dizia, do que as críticas que por aí vamos encontrando em suplementos culturais capazes de reduzir a uma simbologia de estrelas o teatro, o cinema, a literatura, a dança, a música. É a chamada crítica do ovo estrelado, cozinha fácil e rápida para quem nada percebe de culinária.
Os «Apontamentos para uma estética não-aristotélica», de Álvaro de Campos, podem ser úteis neste contexto, não apenas por oporem uma arte enérgica a uma arte cujo fim é a beleza, não apenas por oporem a generalização da individualidade à individualização do geral, não apenas por preferirem a subordinação à sensibilidade a uma subordinação da sensibilidade à inteligência, mas, antes de mais, por recusarem obediência à lógica compilada pelo estagirita. Segundo o princípio da não-contradição, uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ora, toda a obra pessoana, sem excepção, encarregar-se-á de nos demonstrar o contrário, ou seja, que muitas coisas podem ser e não ser ao mesmo tempo. Desde logo os próprios heterónimos, que são e não são ao mesmo tempo, tanto quanto Pessoa é e não é ao mesmo tempo. Um problema metafísico, portanto. Em termos estéticos, isto manifesta-se em versos contraditórios, em antinomias e paradoxos, em frases como estas de «O Marinheiro»: «Começo neste momento a tê-lo sido outrora» ou «Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer». Não é necessário estarmos muito atentos para se nos tornar evidente que na estranheza destas formulações repousa uma consciência particular do tempo.
Santo Agostinho, no Livro Onze das «Confissões», encarregou-se de estudar o tempo segundo o modo como ele é por nós apreendido, formulando a questão da seguinte maneira: «De que modo existem aqueles dois tempos — o passado e o futuro —, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio?» É uma pergunta que podia ter sido feita por uma das veladoras de «O Marinheiro», tantas são as dúvidas que formulam ao longo da conversa, não soubesse Pessoa que a mesma já havia sido elaborada há séculos. No entanto, ele não quis deixar de lhe responder através da Primeira das três veladoras: «Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou…» E depois, através da Terceira: «As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado.» O tempo, de resto, marca toda aquela conversa desde o início, logo quando a começar se diz que «Ainda não deu hora nenhuma», para logo a seguir se notar que «Não se podia ouvir. Não há relógio aqui perto.» Não será esta ausência de relógio a fronteira que demarca a existência das veladoras? Os astros movem-se, elas anunciam o dia que amanhecerá, vivem na noite, existem fora do tempo. Qual a natureza destas veladoras à volta de um caixão com uma donzela? Serão humanas? Serão fantasmas? Melhor dizendo, não serão almas de um outro mundo que já não o nosso? Personagens, personalidades, fingimentos. O nosso mundo é definido pelo tempo, não o delas. Lembremos que o drama estático, para Pessoa, é «revelação de almas sem acção, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade». Palavra do Senhor.
Sugere-me o Fernando Mora Ramos que reflicta sobre eventuais nexos entre «O Marinheiro» e «Na cama com Ofélia». Os nexos afirmam-se quase todos pela desconexão. O tempo está em Ofélia no envelhecimento que a acompanha do primeiro ao último acto. Não está, porém, nos heterónimos, que no momento mais paródico da peça se afirma através da Criatura Preta: «Ora, ora, na situação em que me encontro o tempo nada vale.» «Na cama com Ofélia» nada tem de estático, quer-se movimento. E, sobretudo, questiona a natureza do corpo, desinteressada que se declara da natureza das almas. «Acabou. Morram os deuses e os anjos e as almas do além.» — diz Ofélia, no final. A ponte que aproxima as margens é o sonho. Isto é, tal como as três veladoras de «O Marinheiro» se entretêm, se assim podemos dizer, a partilhar sonhos de vidas passadas, ou vidas passadas transformadas em sonho, também Ofélia partilha na cama muitos dos sonhos que teve. E um que ainda tem. A peça começa, precisamente, com um sonho, e por lá se estende nessa dimensão crepuscular que leva do sonho ao sonambulismo e deste à vidência. As veladoras vivem no limbo, Ofélia vive numa realidade cativa de sonhos dos quais pretende libertar-se. Poderão as veladoras libertar-se do limbo, terão alguma vontade nelas para se libertarem, desejarão sequer ser outra coisa senão aquilo que já são? Não tenho resposta.
O que me parece mais interessante nisto tudo, e esse seria outro jogo possível de se fazer, é pensar nas veladoras como as almas a que Fernando Pessoa veio a dar «existência de papel» com a criação dos heterónimos. Elas passam o tempo a falar do passado, no que nos revelam do passado há muito, porém, do que veio a ser a personalidade dos heterónimos. A Primeira foi «feliz para além de montes outrora…» Alberto Caeiro? A Segunda conta a história do marinheiro, toda ela é mar, dos montes tem medo. Senhor engenheiro naval Álvaro de Campos? E a Terceira fala, do princípio ao fim, como se fosse Ricardo Reis a falar. Ora escutem: «Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem.» Portanto, mais que um velório, em «O Marinheiro» a gente assiste a um parto. É esta a minha tese, e, de certa forma, o próprio texto corrobora a tese quando a Terceira veladora diz para a Segunda: «E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.» E a Segunda responde-lhe: «São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê…» Real de sonho, entenda-se, que no universo de Fernando Pessoa é mais vida do que a própria vida realmente vivida. Também «Na cama com Ofélia» admite a existência de três criaturas, saídas debaixo de uma cama que é onde se recolhem os sonhos depois de os sonharmos. Isto pode ser polémico. O sonho, isso que desmente a lógica aristotélica, é e não é ao mesmo tempo, uma dor fantasma como aquelas que ficam dos órgãos amputados. De alma, no caso de Pessoa. De corpo, no exemplo de Ofélia. A que eu imagino, claro.
Fixemo-nos na despersonalização do dramaturgo. Por ela entender-se-á um desdobramento da personalidade, uma implosão do eu em outros. Para a psicologia seria qualquer coisa como um transtorno dissociativo de identidade, mas para quem cria é mais do que quanto a psicologia almeja alcançar. É o ser em conflito consigo mesmo, uma deslocação do pensamento para o que se lhe opõe, é um exercício magistral de crítica interna, a possibilidade de se afirmar uma coisa e o seu contrário projectando num só as mesas redondas da realidade (tantas vezes mais unânimes do que o desejável, quase sempre timidamente em busca de consensos podres sem interesse algum). Neste sentido, as críticas de Álvaro de Campos a Fernando Pessoa têm muito mais interesse, pela acutilância do primeiro face ao segundo que o inventou, têm muito mais interesse, dizia, do que as críticas que por aí vamos encontrando em suplementos culturais capazes de reduzir a uma simbologia de estrelas o teatro, o cinema, a literatura, a dança, a música. É a chamada crítica do ovo estrelado, cozinha fácil e rápida para quem nada percebe de culinária.
Os «Apontamentos para uma estética não-aristotélica», de Álvaro de Campos, podem ser úteis neste contexto, não apenas por oporem uma arte enérgica a uma arte cujo fim é a beleza, não apenas por oporem a generalização da individualidade à individualização do geral, não apenas por preferirem a subordinação à sensibilidade a uma subordinação da sensibilidade à inteligência, mas, antes de mais, por recusarem obediência à lógica compilada pelo estagirita. Segundo o princípio da não-contradição, uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ora, toda a obra pessoana, sem excepção, encarregar-se-á de nos demonstrar o contrário, ou seja, que muitas coisas podem ser e não ser ao mesmo tempo. Desde logo os próprios heterónimos, que são e não são ao mesmo tempo, tanto quanto Pessoa é e não é ao mesmo tempo. Um problema metafísico, portanto. Em termos estéticos, isto manifesta-se em versos contraditórios, em antinomias e paradoxos, em frases como estas de «O Marinheiro»: «Começo neste momento a tê-lo sido outrora» ou «Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer». Não é necessário estarmos muito atentos para se nos tornar evidente que na estranheza destas formulações repousa uma consciência particular do tempo.
Santo Agostinho, no Livro Onze das «Confissões», encarregou-se de estudar o tempo segundo o modo como ele é por nós apreendido, formulando a questão da seguinte maneira: «De que modo existem aqueles dois tempos — o passado e o futuro —, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio?» É uma pergunta que podia ter sido feita por uma das veladoras de «O Marinheiro», tantas são as dúvidas que formulam ao longo da conversa, não soubesse Pessoa que a mesma já havia sido elaborada há séculos. No entanto, ele não quis deixar de lhe responder através da Primeira das três veladoras: «Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou…» E depois, através da Terceira: «As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado.» O tempo, de resto, marca toda aquela conversa desde o início, logo quando a começar se diz que «Ainda não deu hora nenhuma», para logo a seguir se notar que «Não se podia ouvir. Não há relógio aqui perto.» Não será esta ausência de relógio a fronteira que demarca a existência das veladoras? Os astros movem-se, elas anunciam o dia que amanhecerá, vivem na noite, existem fora do tempo. Qual a natureza destas veladoras à volta de um caixão com uma donzela? Serão humanas? Serão fantasmas? Melhor dizendo, não serão almas de um outro mundo que já não o nosso? Personagens, personalidades, fingimentos. O nosso mundo é definido pelo tempo, não o delas. Lembremos que o drama estático, para Pessoa, é «revelação de almas sem acção, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade». Palavra do Senhor.
Sugere-me o Fernando Mora Ramos que reflicta sobre eventuais nexos entre «O Marinheiro» e «Na cama com Ofélia». Os nexos afirmam-se quase todos pela desconexão. O tempo está em Ofélia no envelhecimento que a acompanha do primeiro ao último acto. Não está, porém, nos heterónimos, que no momento mais paródico da peça se afirma através da Criatura Preta: «Ora, ora, na situação em que me encontro o tempo nada vale.» «Na cama com Ofélia» nada tem de estático, quer-se movimento. E, sobretudo, questiona a natureza do corpo, desinteressada que se declara da natureza das almas. «Acabou. Morram os deuses e os anjos e as almas do além.» — diz Ofélia, no final. A ponte que aproxima as margens é o sonho. Isto é, tal como as três veladoras de «O Marinheiro» se entretêm, se assim podemos dizer, a partilhar sonhos de vidas passadas, ou vidas passadas transformadas em sonho, também Ofélia partilha na cama muitos dos sonhos que teve. E um que ainda tem. A peça começa, precisamente, com um sonho, e por lá se estende nessa dimensão crepuscular que leva do sonho ao sonambulismo e deste à vidência. As veladoras vivem no limbo, Ofélia vive numa realidade cativa de sonhos dos quais pretende libertar-se. Poderão as veladoras libertar-se do limbo, terão alguma vontade nelas para se libertarem, desejarão sequer ser outra coisa senão aquilo que já são? Não tenho resposta.
O que me parece mais interessante nisto tudo, e esse seria outro jogo possível de se fazer, é pensar nas veladoras como as almas a que Fernando Pessoa veio a dar «existência de papel» com a criação dos heterónimos. Elas passam o tempo a falar do passado, no que nos revelam do passado há muito, porém, do que veio a ser a personalidade dos heterónimos. A Primeira foi «feliz para além de montes outrora…» Alberto Caeiro? A Segunda conta a história do marinheiro, toda ela é mar, dos montes tem medo. Senhor engenheiro naval Álvaro de Campos? E a Terceira fala, do princípio ao fim, como se fosse Ricardo Reis a falar. Ora escutem: «Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem.» Portanto, mais que um velório, em «O Marinheiro» a gente assiste a um parto. É esta a minha tese, e, de certa forma, o próprio texto corrobora a tese quando a Terceira veladora diz para a Segunda: «E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.» E a Segunda responde-lhe: «São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê…» Real de sonho, entenda-se, que no universo de Fernando Pessoa é mais vida do que a própria vida realmente vivida. Também «Na cama com Ofélia» admite a existência de três criaturas, saídas debaixo de uma cama que é onde se recolhem os sonhos depois de os sonharmos. Isto pode ser polémico. O sonho, isso que desmente a lógica aristotélica, é e não é ao mesmo tempo, uma dor fantasma como aquelas que ficam dos órgãos amputados. De alma, no caso de Pessoa. De corpo, no exemplo de Ofélia. A que eu imagino, claro.
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