Um texto do escritor Abel Neves. A ilustração é minha:
ESTE OESTE ÉDEN
Uso o título duma obra para o teatro, Este Oeste Éden.
Eu, que não frequento as tertúlias de comentadores
televisivos, decidi assistir a uma delas. Ouvi, enlevado, os inefáveis que,
pelo visto, têm assento costumeiro nos canais, e vi, arregalado, os mapas
coloridos com a Rússia a estender-se a vermelho até ao infinito leste.
A oeste nada de novo, mas as fronteiras terrivelmente
ameaçadas. Não há dúvida de que Paulo Portas é um profeta.
Fui-me depois a uma leitura de um conto de Tchékhov, mas
como fiquei com a consciência mordiscada [talvez devesse assistir a mais
tertúlias televisivas não só para aprender a fazer explosivos como a rijar o
espírito e não me deixar impressionar com certos devaneios ideológicos] decidi
alinhavar, também eu, a seguinte pregação que, obviamente, ninguém encomendou.
Se perguntada sobre os motivos – até mais próximos - que
levaram a mais esta embrulhada guerreira na Ucrânia, uma imensa maioria não
saberá, ou não quererá, descortinar.
Basta-lhe o instinto para condenar quem deu o primeiro
passo – neste caso, Putin, cujo estilo, verve e ciência política é sistematicamente
metralhada pelos poderes antagónicos, à cabeça dos quais está o
norte-americano, figurando o tal polvo: a mente é o das oligarquias
norte-americanas [o jogo é de alterne: como sabemos, revezam-se
democraticamente, alternam o poder de quatro em quatro anos, fingindo que
alteram o poder, mas a decoração cimeira é sempre a mesma] e os tentáculos são
os bastardinhos, europeus e ainda outros.
As propagandas – todas elas - fazem bom trabalho, mesmo
procurando ocultar informação.
Deixamo-nos facilmente levar pelas ondas de informação
que as televisões despejam a toda a hora – quem é que não é contra uma guerra,
sobretudo se do lado aparentemente mais obscuro está um russo? - e, verdade
seja dita, cabe-nos a hercúlea tarefa de encontrar matéria de reflexão entre as
doutas e panegíricas retóricas de jornalistas e comentadores, de Milhazes, dos
Santos, a Rogeiro, Costa e outros.
Muito fácil é, pois, estar contra uma guerra, e se mete
russos há que vestir rapidamente a panóplia e, sem olhar a motivos, desancar nos
monstros que comem criancinhas logo ao raiar da aurora. Sim, porque nisto de
russos, basta que o sejam para que se declare o estigma de “comunista”.
[Lembrar, de passagem, que ainda antes dos canibalescos comunistas se
entreterem com a iguaria já o nosso Camilo Castelo Branco num dos seus romances
– “Mistérios de Lisboa” – e pela boca de uma vizinha de bairro dispara, à
janela, que os liberais comiam criancinhas ao pequeno-almoço. Mas adiante.]
É, pois, muito fácil ser-se contra qualquer guerra e
quanto mais próxima estiver do raio de acção dos canais nacionais de tevê mais
comoverá. É de lei emocional: uma guerra distante é mais abstracta, os mortos
não entram tão certeiros na nossa consciência.
Agora, procurar os motivos que levam alguém com superior
responsabilidade a dar um primeiro passo para uma guerra já obriga a dedicar
algum tempo ao esclarecimento ou, pelo menos, a juntar alguns elementos
factuais que ajudem a esclarecer.
Creio – é uma fé, sim - que o gás e o petróleo explicam
muita coisa, mas não tudo. Afirmado sem mística ou ingenuidade, a terra russa,
a terra ucraniana, têm mais mistério do que os seus valiosos recursos, mas
neste particular, oligarcas russos, norte-americanos, e outros
“amaricanizados”, árabes e chineses, entendem-se muito bem, embora precisem de
ajustar e negociar os tesouros, sobretudo se num lado ou noutro falham
compromissos, e produzindo os seus domínios de influência.
O poder territorial e o negócio ditam os passos.
As democracias têm tido esta soberba capacidade de produzir
corrupção sobre corrupção com a maior das latas [e a coisa já vem da Grécia com
a guerra do Peloponeso, por exemplo] e as pessoas gesticulam, berram, mas
estão-se nas tintas quando se desenvolvem sinais perigosos que tendem a criar
avalanche e o tal primeiro passo para a guerra, preferindo reagir
instintivamente na hora do pior aperto, seguindo a trilha da propaganda
orientada pelas vozes de certos donos.
No mais recente, assistimos na Ucrânia desde 2012 a uma
instabilidade social e política que tem patrocínio.
Adivinhe-se quem patrocina.
Pouco a pouco, a onda neo-nazi instalou-se nas
manifestações pacíficas em Kiev – há documentos filmados que mostram os métodos
– e duma contestação que exigia o diálogo com o poder e que era possível,
gerou-se a violência que culminou com a destituição, em 2014, do presidente
eleito Viktor Yanukovich – eleito democraticamente, sim, e a eleição sob
observação de comissão europeia - mas que não agradou à extrema-direita nem aos
seus patronos além fronteiras.
O neo-nazismo aproveitou o ar livre e espoletou os seus
movimentos: Svoboda, Narodniy Rukh, Trizub ou o “Ala Direita”, todos
nacionalistas, radicais.
Dos gritos ouvidos nas manifestações, após o golpe, um
deles foi : “Fora com os judeus e os russos. A Ucrânia para os ucranianos”.
Com isto, não admira que tenham pedido uma purga para os
muitos milhares de judeus, e a "luminosa" marcha nocturna com
archotes que realizaram logo em 2015 a replicar os cortejos nazis na Alemanha
de 1939, sinalizaram isso mesmo [e há pouco mesmo, em Janeiro deste ano, 2022,
voltaram às ruas de Kiev com os archotes e estandartes fascistas homenageando o
líder ultra-nacionalista Stepan Bandera, dos anos 30/40, morto na Alemanha em
1959].
Seria um insulto inaceitável considerar a Ucrânia um país
dominado pelo nazismo, mas que esta peste social que acreditávamos ter sido
exterminada no final da segunda guerra mundial ganhou, infelizmente, muita raiz
por ali é uma verdade inquestionável.
Bem sabemos que qualquer guerra é o berço da tragédia e
da ignomínia - é tão fácil escrever sobre coisas difíceis - mas o extremismo
fascista alimenta-se da terra ucraniana, toma paulatinamente o poder, impede as
minorias de viverem condignamente [o modo xenófobo como foram tratados os
estrangeiros, em particular os africanos, ao quererem abandonar a Ucrânia no
início da operação militar, havendo, por isso, numa situação de aflição,
cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, foi só um sinal mínimo].
É sabida, mas bastas vezes ocultada, a cumplicidade entre
grupos nacionalistas ucranianos e nazis alemães na perseguição e assassinato de
judeus na segunda guerra mundial. Poder-se-ia pensar que a época do terror
passou, mas não. Os ideólogos desse tempo, duma “Ucrânia para os ucranianos”,
foram desenterrados e ei-los, de novo, à luz do dia, os espectros e os que,
agora, são a nova geração infernal.
Infelizmente, acostumámo-nos a “bizarras” cumplicidades.
O poder norte-americano fez questão de estar presente em reuniões públicas com
notórios radicais da direita ucraniana [exemplo é o do antigo senador
republicano John MacCain, já falecido, que, na altura em que perdeu a eleição
para Obama, afirmou que a influência americana no mundo tinha caído de modo
profundo, e vai daí vimo-lo pouco depois a consagrar os extremistas ucranianos
e dizendo, logo em 2014, que era necessário – sublinho e convém reter -
“enfrentar Putin pela Ucrânia e impor sanções”].
Depois do assassinato - em vídeo directo e exclusivo para
a Casa Branca - de Bin Laden, em Maio de 2011, a que assistiram – sem grande
aprumo moral, diga-se - entre outros Obama [a quem cheguei a tecer umas loas
pela sua notória inteligência] e Hilary Clinton, começou a tomar melhor forma o
guião da triste e trágica novela ucraniana, a par das festas em Hollywood e no
Dubai.
Pode dizer-se “Putin não tem o direito de invadir a
Ucrânia”.
Não tem, mas ao ser-lhe ostensiva e humilhantemente
negada a possibilidade de negociar a segurança da terra russa por via do
assédio da Nato na Ucrânia, tem o direito de exigir da parte deste país que
assuma e assegure um estatuto de neutralidade militar, sabendo-se, como se
sabe, das distâncias entre a fronteira ucraniana e Moscovo.
Neutralidade.
A Ucrânia que, após a renovada independência, em 1991, se
declarou um “Estado neutro” e logo depois estendeu à mão à Nato, será que tem
assim tanta dificuldade em aceitar a neutralidade para garantir uma paz
duradoura com os seus vizinhos? Se não tem porque não assume em acordo sério o
compromisso anteriormente anunciado?
Podemos desejar que assim não seja, mas a lógica dos
poderes militares é, sobretudo, a das armas, e também sabemos, ou podemos
imaginar, o valor das indústrias de armamento, e tornando-se, em muitos casos,
obsoletas há que despachá-las para algum terreiro favorável.
Russos e ucranianos estiveram estes 10 anos para resolver
diplomaticamente o problema da segurança de ambas as partes. As pretensões
russas – a tal neutralidade e a paz nas regiões de Lugansk e de Donetsk –
entraram por um ouvido e saíram pelo outro, e, na reacção russa à sempre adiada
solução, a “proposta” soprada aos ucranianos pelos obscuros “natistas” foi
sempre a de que haveria sanções – as tais – caso a Rússia se atrevesse a ir
mais além. Deveriam os responsáveis russos aceitar ad aeternum o assédio e o
cerco “ocidental” nas suas fronteiras e capitular no seu legítimo direito de defesa?
Imagine-se o que seria se, por absurdo, o México – que eu já nem lembrava que
faz fronteira com a Califórnia – equacionasse aderir simpatica e militarmente
ao fardamento russo e aceitasse ponderar a possibilidade de uns mísseis
colocados no seu território. Como seria? Qual seria a reacção dos oligarcas
norte-americanos, ainda que o México não faça parte do exclusivo clube dos 9
países com armamento nuclear?
Ora, o que certos responsáveis ucranianos têm feito ao
longo dos anos é, junto com a sonsice marionetista norte-americana, facilitar a
cada passo a presença “ocidental” no território, namoriscando a possibilidade
de integrar o clube da Nato. Pode, então, dizer-se que os responsáveis
políticos ucranianos estiveram mais interessados em criar mais tensão com a
Rússia do que, junto com ela, procurar um desejável e saudável convívio entre
ambos os povos.
Dir-se-á: a Ucrânia é um país independente e livre, e
quanto às escolhas militares decide o que quiser, escolhendo os amigos que
entender.
Independente e livre, sim, mas quanto ao resto será
preciso saber conviver com o mundo, com os vizinhos, ainda que a contragosto, e
não apenas fazendo valer um desígnio nacional, ainda que respeitável, se bem
que deva ser condenado quando se torna um nacionalismo patológico.
Havendo populações – no leste - que desejam continuar a
pertencer à identidade cultural russa, que não são respeitadas, que são
sistematicamente violentadas - e também na sua língua -, quando há evidências
de crimes étnicos, tem ou não tem a Rússia o dever de as assistir?
Goste-se, ou não – e eu, lá está, não tenho particular
gosto pelo seu estilo, mas isso não é, nem pode ser, critério de avaliação
política - Putin representa a Rússia, a terra russa, que não, obviamente, todos
os russos.
Ao actual presidente ucraniano andaram, muito
provavelmente, alguns caixeiros-viajantes a prometer mundos e fundos e sempre
com a intenção de o ver aproximado ao interesse e expansionismo da Nato. E
assim foi, ao longo destes anos até à situação actual, e não há como baralhar
ou esconder os factos, como também não pode ignorar-se a inominável tragédia da
Ucrânia nos anos 30 do século passado ao tempo de Staline que condenou à fome o
povo ucraniano. O ódio aos soviéticos – e por aí à Rússia – tem factos
históricos absolutamente infelizes e poderá até justificar o nacionalismo
exacerbado, mas não a cumplicidade no extermínio premeditados dos judeus.
Nestes dez anos recentes não houve nenhum interesse da
parte dos “democratas ocidentais”, norte-americanos e europeus, em solucionar o
problema, antes, promovê-lo, adiando e chantageando com sanções. Foi isto. E
eventuais acordos queriam-nos secretos. Putin exigiu que fossem tornados
públicos.
Antes desta invasão, houve cidadãos do leste da Ucrânia,
nos territórios de Lugansk e Donestsk, e mais a oeste, em Odessa, que foram
assassinados e ninguém disse nada, ninguém reparou, ninguém ousou, as
televisões e as redes sociais andaram distraídas, melhor, repararam os
injustiçados, os que estavam mais próximos, os que choraram os seus familiares
longe das televisões e das redes sociais. A oeste nada de novo.
Por esses, e muitos mais, vítimas doutros crimes, doutras
guerras, noutros lugares, será preciso também denunciar a injustiça e, se
possível, por muito que custe, hastear a única bandeira, sem cor, mas que
sempre traz alguma esperança: a do diálogo, sério e comprometido.
Bem podem dizer-me: longe da tua pregação, o que Putin
quer é reconstituir o “império russo”, perdido nos anos 80 do século passado,
mas... será mesmo isso? Foram 14 repúblicas que se tornaram independentes
depois do colapso da União Soviética – eram 15 - e que mantêm a sua
independência e integridade. Então, restaurar que império?
Independente e livre, neutral e respeitadora da vida das
populações russófonas, eis o que se espera da Ucrânia. O mesmo da Rússia para
com o povo ucraniano, num acordo que dê o fim a esta triste e infeliz aventura
militar.
Não sendo bruxo, não conseguindo indagar a mente
xadrezista de Putin, terei de admitir que poderei estar enganado quanto às suas
intenções [e devo respeitar quem esgrima outros argumentos, e quem sou eu,
vulgar cidadão, muito longe de ser um qualquer analista político, para entender
o miolo das altas esferas da decisão política mundial?] mas esta é a percepção
que tenho com alguns factos disponíveis, e, ao que sei, não serei o único. Se
com o pretexto de uma exigência muito séria quanto à necessária neutralidade
militar e também com a tentativa de desmantelamento das muitas milícias
neo-nazis, Putin pretender ir mais adiante e procurar a anexação da Ucrânia
[coisa que me parece totalmente descabida], aí o caldo estará entornado porque,
simplesmente, não o poderá fazer.
Dito tudo isto, pregando como pude, também mostro as
minhas flores contra a guerra. Nem poderia ser doutro modo.
Ninguém deveria saber usá-la, ninguém deveria merecê-la,
ninguém deveria desejá-la, ninguém no seu perfeito juízo deveria sequer
pronunciá-la, mas ela existe. A guerra? Há que exterminá-la.
E, porque posso, regresso à leitura de Tchékhov.
“O velho septuagenário Mikhail Petrov Zótov, popular de
condição, decrépito e solitário, acordou por causa do frio e da quebreira no
corpo todo. Ainda estava escuro no quarto, mas a lamparina do ícone já não
ardia. Zótov levantou a ponta da cortina e espreitou pela janela. (...)”
1 comentário:
Já passámos o Anschluss, os Sudetas e entrámos na Polónia. Alguém com superior responsabilidade já deu o primeiro passo para uma guerra. O alargamento do Lebensraum está em curso. A justificação é a de sempre. A culpa? Das democracias. Essas soberbas e impuras desde a Grécia. Talvez de aqui a 83 anos não haja democracias. Ámen.
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