Valerá a pena regar o deserto? Para quê insistir em regar o deserto? Talvez já tenhamos desistido, sem assumir de modo aberto a desistência. Fechemos o deserto. Perante os outros e perante nós. Vejam o que o tempo faz às coisas, tornando-as defeituosas, inúteis, desgastando-as a ponto de arruiná-las, vejam como o tempo produz exactamente os mesmos efeitos nas pessoas e nos elos que entre elas se anelam. Será a morte a cura do tempo? Quando dizemos que o tempo tudo cura, queremos dizer exactamente o quê? O tempo envelhece e mata. Mesmo quando envelhecer significa apurar, esse apuramento aproxima do fim. E há tanta gente a envelhecer tão mal, cheia de rancor e de raiva, incapaz de apurar dentro de si o que quer que seja a não ser frustrações. Não me parece nada boa opção morrer a fingir, tal como se viveu, não me parece nada boa opção morrer coberto de enganos, enrolado como as múmias numa gaze de hipocrisia para que melhor se conservem na carne os contornos da mentira. O mais provável é que a opção pela verdade nos condene à solidão. Sem dúvida preferível a ter alguém por perto para passar a vida a pedir que se afaste. Penso nisto enquanto escuto Midnight Blue, de Kenny Burrell, e leio que há anos alguém mostrou preocupação pelo isolamento a que se entregou na sequência de problemas com a sua mulher — 37 anos mais nova. Ele vai fazer 92, ela terá 55. Eu farei 48 em Novembro, se lá chegar.
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