domingo, 29 de maio de 2022

MAQUIAVEL E NÓS


Maquiavel (1469-1527) escreveu o essencial da sua obra filosófica e política já depois de haver caído em desgraça. À queda do governo republicano em Florença e ao regresso dos Médicis, em 1512, correspondeu a destituição de Maquiavel dos cargos políticos que então ocupava, seguida de prisão, tortura, exílio. Marie Gaille-Nikodimov chamou «tempo do otium e dos diálogos políticos» a esse período em que o autor de A Arte da Guerra (1521), única obra publicada em vida, se dedicou à redacção de O Príncipe e dos Discursos Sobre a Primeira Década de Tito-Lívio. Terá sido em 1513 que esses textos fundamentais do Renascimento começaram a ser escritos. A obra mais conhecida, O Príncipe, foi publicada apenas postumamente, em 1532, gerando de imediato uma polémica que a tomou por alvo de ataques distintos até à arrumação definitiva no Index Librorum Prohibitorum. Aí permaneceu entre 1551 e 1929, granjeando porventura mais curiosidade e simpatia do que a que teria merecido não fosse a censura eclesiástica. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) viu neste «pequeno livro» uma espécie de sátira, à maneira de outras que marcaram o mesmo período histórico. Penso no Elogio da Loucura (1511), de Erasmo de Roterdão (1466-1536), ou na Utopia (1516) de Thomas More (1478-1535). Assim sendo, a intenção de O Príncipe seria a de, fazendo-se passar por um tratado dirigido a quem governa, mostrar ao povo a arte de governar, tese de que Louis Althusser se distancia não sem aceitar a pertinência de um problema que levanta: «De facto, o texto de Maquiavel está disposto de tal modo que não é possível não se ser, de uma maneira ou de outra, inconsciente ou conscientemente, surpreendido pela questão: para quem é que este texto foi escrito, e de que ponto de vista é que foi escrito?» (p. 63) É a esta questão que procurará responder no ensaio Maquiavel e Nós (VS, Outubro de 2021), percorrendo a recepção do texto ao longo dos séculos. A escrita de Althusser é de uma clareza excepcional que não se compadece com perspectivas simplistas nem tem a pretensão de ser uma leitura definitiva do pensamento político de Maquiavel, ainda que nos sintamos tentados a considerá-la como tal. Começa logo por chutar para canto o conhecido texto de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) intitulado Nota Sobre Maquiavel (1949), por, na sua opinião, trair o carácter surpreendente e insólito de O Príncipe procurando resolvê-lo onde ele se apresenta irresolúvel. Essa riqueza é roubada por Merleau-Ponty ao sugerir um Maquiavel «tentado pelo cinismo», praticante de uma retórica essencialmente diplomática, preocupada com a verdade material dos factos contra a hipocrisia de uma literatura desenraizada dos comportamentos, humanista por nos mostrar «um começo de humanidade emergindo da vida colectiva como que à revelia do poder». Althusser recusa este tipo de redução do texto a um propósito que está longe de ser fiel à sua própria complexidade, aproximando-se mais da leitura gramsciana de O Príncipe enquanto manifesto: «Gramsci escreve serenamente que O Príncipe é um «manifesto» e uma «utopia revolucionária». Digamos, para condensar: «um manifesto utópico revolucionário» (p. 37). Independentemente do interesse que possa merecer o debate acerca da natureza e do verdadeiro fim da obra de Maquiavel, autor para quem os fins de certo modo determinavam os meios, bem mais interessante é a noção que Althusser fundamenta de um Maquiavel utopista teórico, o que nada tem que ver com utopismo ideológico ou político, e o périplo empreendido por conceitos centrais nesta obra, lidos aqui à luz de um marxismo empenhado, tais como os de unidade nacional, as condições de durabilidade do estado, a oposição estado/povo, acaso e fortuna, a virtú enquanto «excelência da capacidade política» (p. 91), a noção de dilema, a luta de classes, o problema das linhagens, etc. São quatro capítulos de leitura aprazível, com prefácio de João Oliveira Duarte e tradução de Diogo Paiva. O entusiasmo final de Louis Althusser é digno de nota: «Maquiavel não faz outra coisa senão pensar nas condições de existência e de classe dessa forma de transição entre a feudalidade e o capitalismo que é a monarquia absoluta» (p. 166). Não faz outra coisa senão? Será?

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