sábado, 14 de maio de 2022

PRIORIDADES

 
   Hoje acordei com saudades dos tempos em que João Soares ameaçava com bofetadas os colunistas do Público, mas não é disso que quero falar. Tive um sonho. Partilho? Não partilho? A vida agora é esta angústia de hesitação, o receio de melindrar tanta sensibilidade à solta. Como estou doentinho, mas francamente melhor (já tenho sonhos), vossas excelências perdoarão.
   Pois bem, a noite passada sonhei que estava na bicha para pagar as compras do supermercado. Ao olhar para trás, reparei numa velhinha com bengala. Cedi prioridade, mas logo ela me devolveu esgares de reprovação.
   Sou alguma deficiente?, perguntou.
   Nada disso, minha senhora, está na lei, tem prioridade.
   Qual lei?, insistiu.
   Ora, expliquei, a lei do atendimento prioritário. A alinha b prevê que se conceda prioridade a "pessoas idosas com idade igual ou superior a 65 anos e que apresentem evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais". Fim de citação.
   Está a chamar-me doida? Acha que sou deficiente mental?
   Nada disso, nada disso, peço desculpa, só tentava ser simpático.
   Vá ser simpático para a sua terra. Aposto que é por eu ser preta, não é? Racistas! Não podem ver um preto por trás pensam logo que vão ser roubados.
   Eu nem tinha reparado na tez da mulher, que estava possessa. Queria lá saber se era preta, amarela ou vermelha, só pretendia ser simpático e cidadão exemplar, respeitador da lei. A mulher desviou para a bicha do lado rematando a contenda, deixando atrás de mim uma grávida.
   Pode passar, disse-lhe com um sorriso nos lábios.
   Mas porquê?
   Então, está de esperanças.
   E isso é alguma doença?
   Não, Jesus, mas, mas, mas...
   É verdade que gaguejei, a situação anterior com a velha deixara-me sem resposta, titubeante. A grávida aproximou-se com um dedo em riste e começou a barafustar, enquanto afagava a pança com a outra mão:
    Vocês, homens, são todos iguais, não podem ver uma mulher grávida e pensam logo que somos inferiores, cambada de patriarcado opressor, mas alguém lhe pediu consentimento para passar à frente, deve ter a mania que é o imperador de Roma, mete a prioridade no cu, ó machista do caralho.
   Perdoem-me a linguagem, uma pessoa não tem mão nos sonhos. Nem queria acreditar no que me estava a acontecer. Fiquei mesmo triste. Tão triste que resolvi abandonar a bicha, não fosse aparecer alguém de cadeira de rodas. Quedei-me junto aos gelados, agarrei numa caixa de Cookie Dough Ben & Jerry e desatei a devorá-lo com os próprios dedos. Vai nisto aparece um empregado.
   Ó querido, disse ele, não pode fazer isso.
   O quê?, questionei.
   Aí a lambuzar-se todo, uma pessoa até fica sem ar a vê-lo chupar os dedos dessa maneira.
   O tipo tinha um ar efeminado, mas como não ligo a essas coisas nem o tomei em consideração. Pedi-lhe que me deixasse em paz, quando regressasse à fila pagaria o gelado.
   Fila, qual fila?, questionou-me com semblante a transparecer indignação.
   A fila para pagar, respondi.
   Não se diz fila, amor, diz-se bicha. Tens algum problema com as bichas, ó macho?
   E voltou-me as costas.
   Respirei fundo e meti mais uma dedada de gelado na boca, antes de aproveitar uma caixa sem ninguém na bicha ou fila ou como preferirem e correr para pagar. Nisto, esbarrei num resto de gelado inadvertidamente caído no chão, fui de encontro a um tipo com uma criança de colo, segui sem lhe dirigir palavra, paguei e zarpei. Estava saturado de conversas. Ainda olhei sobre o ombro e reparei no tipo com a criança de colo a falar com o caixa. Acho que falavam de mim, não me pareceu que dissessem coisa boa.

1 comentário:

sonia disse...

Arre! Vai saber o que nos resta fazer numa fila ou bicha onde haja prioridades. O melhor é fingir-se de cego e esperar a sua vez...rsrsrs