domingo, 26 de junho de 2022

DE PHNOM PENH A MELILHA

 


Verificamos que a perversidade do mundo em que vivemos atingiu níveis difíceis de determinar quando um massacre como o ocorrido em Melilha, aqui ao lado, não inspira senão a indiferença das elites e a indolência das massas. Entre as vítimas não estavam crianças louras de olhos azuis, visitadas e confortadas por vedetas de Hollywood. Estavam pessoas desamparadas, sem bandeiras nem líderes made in cultura pop, incapazes de se fazerem ouvir em parlamentos, sem direito a quem as defenda diariamente nos órgãos de comunicação social ou a quem por elas se manifeste nas ruas. Estava gente que não importa, não inspira, gente anónima de nascença até à hora de morrer espancada, assassinada, de fome ou de sede, afogada, naufragada. Mas para se perceber bem o grau de perversidade de tudo isto e, pelo menos, não perder totalmente o nojo que toda esta hipocrisia deve merecer vomitar não cura, mas alivia , sugiro a leitura do extenso e informado artigo de Bruno Lamas justamente intitulado “O Colapso da Modernização e as Perfídias do Complexo Industrial Anti-«Escravatura Moderna»”, distribuído em duas partes pelos números 8 e 9 da revista Flauta de Luz. Da primeira parte, tornada pública no n.º 8, destaco este parágrafo e uma nota de rodapé, para que se perceba bem a tal perversidade que nos domina, manipula, controla, coage, num mundo sujo em que somos cada vez mais marionetas de tendências e sujeitos influenciáveis pela porcaria mediática:
 
«Na estratégia de comunicação neo-abolicionista é extremamente comum saltar-se de números na ordem dos milhões para relatos biográficos e sessões fotográficas de «escravos modernos» individuais, invariavelmente tratados pelo primeiro nome; isso acontece tanto em reportagens jornalísticas como em obras académicas especializadas. Constituiu-se também uma indústria literária de narrativas de sobrevivência de «escravos modernos» libertos. Desde a década d e1990 já se publicaram quarenta e um livros do género; somando outras formas de relato (antologias, artigos, testemunhos, reportagens, etc.) são já mais de trezentas narrativas de «escravatura moderna» (Murphy 2019,7). Usualmente as narrativas em formato de livro envolvem escritores-fantasma ou a orientação de neo-abolicionistas, acentuando-se determinados aspectos em função do ambiente político-cultural do momento. As narrativas são muitas vezes publicadas ou promovidas por ONG anti-«escravatura moderna» em busca de atenção renovada e apoios financeiros, sendo conhecidos casos de relatos exagerados ou fictícios e mesmo de embustes filantrópicos em larga escala.»
 
Nota: «O caso mais famoso é o de Somaly Mam, uma cambojana que se tornou um ícone do combate ao tráfico sexual na sequência do lançamento da sua autobiografia (“Le silence de l’innocense, 2005), onde Mam narra como foi raptada e vítima de escravatura sexual durante anos num bordel de Phnom Penh, até finalmente conseguir escapar. A função do livro era chamar a atenção apra a ONG de combate ao tráfico sexual (“Agir pour les Femmes en Situation Précaire”) criada em 1996 por Mam e o seu marido, um experiente profissional francês do sector das ONG do mundo asiático. A tradução inglesa do livro lançou Mam para a ribalta internacional: falou em talk shows americanos, pousou junto de celebridades de Hollywood, recebeu o apoio de destacadas figuras políticas (como Hillary Clinton), foi distinguida por diversos prémios internacionais (incluindo um prémio Príncipe das Astúrias), criou uma fundação com o seu nome e chegou mesmo a discursar na Organização das Nações Unidas (Murphy 2019, 183). Em 2014, após se terem começado a notar inconsistências entre os diversos relatos televisivos de Mam, uma reportagem da Newsweek revelou que a maior parte da sua narrativa autobiográfica era fictícia e um elaborado esquema de captar financiamento. Posteriormente, o marido de Mam justificou-se assim: «Eu queria chamar muita atenção para obter fundos de instituições internacionais. Somaly é linda, sexy, carismática e determinada. Toda ONG sonha em ter a sua Somaly, e todos os media a querem diante das câmeras. Logo nos tornámos muito conhecidos e recebemos muitos jornalistas. Todos eles queriam fazer algo sexy, para chamar a atenção e marcar a mente de todos. […] Quando você trabalha neste mundo, sabe que histórias inventadas são usadas por todos para obter financiamento.
 
(Na imagem, Anitta abana o cu. Pode ser que assim prestem alguma atenção ao assunto em apreço.)

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