terça-feira, 7 de junho de 2022

FERRO EM BRASA

 


   Que me recorde, os livros saídos da parceria entre Manuel da Silva Ramos e João Alfacinha da Silva foram os únicos escritos a duas mãos que verdadeiramente me entusiasmaram. Até dar com este Ferro em Brasa (Antígona, Julho de 2021), produção da dupla Filipe Homem Fonseca & Miguel Martins. Ainda que aqui e acolá seja perceptível quem escreveu o quê, não sem margem de erro, isso é o menos relevante numa obra marcada pela liberdade experimental e pelo gozo de escrever. Ganha o leitor com o divertimento.
   Os primeiros capítulos desenham a história de um droguista que, entediado com a vida, resolve matar uma velha, a última cliente, e voltar costas à família partindo à aventura, invertendo os dilemas morais legados à humanidade por Crime e Castigo. O anti-herói da narrativa inicial está-se nas tintas para o peso da consciência, carga que nas suas acções nada determina. Quer é curtir, largando no lixo mais de duas décadas de servidão doméstica. Está dado o mote: «Nunca mais teria uma vida mediana. Tampouco viveria «à grande». O tempo que lhe sobrasse, fosse qual fosse o desfecho a que tudo aquilo viesse a conduzir, vivê-lo-ia «à pequena», gastando sem pensar, acima das suas possibilidades, mas como os deserdados no dia em que recebem o ordenado mínimo» (p. 23).
   Também a isto podemos e devemos chamar estética do excesso (ou do desperdício, se preferirem), a qual se faz acompanhar de uma cisão ética entre o indivíduo e as massas. À indústria de uma moral castradora e cristalizadora sobrepõe-se, deste modo, um hedonismo libertário mais empenhado nos prazeres imediatos do que em hipotéticas compensações post mortem. A vantagem é uma revalorização da vida na terra, ainda que partindo de pressupostos não necessariamente favoráveis à Terra no geral e às pessoas em particular. Isto é, para que seja agradável a passagem de um homem pelo Inferno impõe-se que o Inferno atravessado passe o mais despercebido possível. E o Inferno, como já alguém disse, são os outros, é o mundo.
   Larguemos, porém, a especulação filosófica, que tende a encalhar em paradoxos bem menos interessantes do que o nonsense fundido neste Ferro em Brasa. Os prazeres, já sabemos, foram há muito definidos e são todos pecado mortal: sexo, drogas e rock’n’roll. Este último não ficou inscrito na pedra porque ainda não tinha sido inventado à época de João, o Evangelista. Inúmeras são as referências musicais sugeridas neste livro à laia de banda sonora; inúmeras são, de resto, as referências neste livro que delas se serve tanto para parodiar o quotidiano como a dita alta literatura, desmontando ironicamente os vícios de escrita com a prática e a denúncia desses mesmos vícios (Laurence Sterne foi mestre neste tipo de recurso): «Foi despertado pelo violento e extasiante embate da onda de Hokusai / (ai, tanta referência) / bem no meio das trombas» (p. 88). Este aspecto aplica-se igualmente na desmontagem formal exercida, sobretudo, na Parte IV, intitulada Espiral (ao todo, são VIII as partes), com capítulos quase integralmente preenchidos por notas de rodapé, recolhas de aforismos e um hilariante índice «onomástico, retro e prospectivo, de criaturas respigadas à chamada realidade e a outras ficções pré-existentes» (p. 115).
   O tom é geralmente jocoso, brincalhão, divertido, mas também culto e poético, de uma cultura e de uma poesia que, deo gratias (ai, tanta locução latina), não tenta impor pontos de vista ao leitor como consegue sacar-lhe sorrisos, risos, gargalhadas: «Ezra Pound disse «A poesia é tanto uma “crítica da vida” como um ferro em brasa é uma crítica do fogo» — e se de modo algum contestamos este ponto de vista, convém, contudo, contrabalançá-lo, parece-nos, / (ai, tanta, vírgula) / com a preciosa e desencantada reflexão do árbitro Vítor Correia: «Desde que vi um porco a andar de bicicleta, já nada me surpreende.» Até porque se cumpriram, aqui há atrasado, 110 anos sobre a implantação da República, um triângulo que não é nem equilátero, nem isósceles, nem escaleno, muito pelo contrário» (pp. 165-166).

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