Que me recorde, os livros saídos da
parceria entre Manuel da Silva Ramos e João Alfacinha da Silva foram os únicos escritos
a duas mãos que verdadeiramente me entusiasmaram. Até dar com este Ferro em Brasa
(Antígona, Julho de 2021), produção da dupla Filipe Homem Fonseca & Miguel
Martins. Ainda que aqui e acolá seja perceptível quem escreveu o quê, não sem
margem de erro, isso é o menos relevante numa obra marcada pela liberdade experimental
e pelo gozo de escrever. Ganha o leitor com o divertimento.
Os primeiros
capítulos desenham a história de um droguista que, entediado com a vida,
resolve matar uma velha, a última cliente, e voltar costas à família partindo à
aventura, invertendo os dilemas morais legados à humanidade por Crime e Castigo. O anti-herói da
narrativa inicial está-se nas tintas para o peso da consciência, carga que nas
suas acções nada determina. Quer é curtir, largando no lixo mais de duas
décadas de servidão doméstica. Está dado o mote: «Nunca mais teria uma vida
mediana. Tampouco viveria «à grande». O tempo que lhe sobrasse, fosse qual
fosse o desfecho a que tudo aquilo viesse a conduzir, vivê-lo-ia «à pequena»,
gastando sem pensar, acima das suas possibilidades, mas como os deserdados no
dia em que recebem o ordenado mínimo» (p. 23).
Também a isto podemos e devemos
chamar estética do excesso (ou do desperdício, se preferirem), a qual se faz
acompanhar de uma cisão ética entre o indivíduo e as massas. À indústria de uma
moral castradora e cristalizadora sobrepõe-se, deste modo, um hedonismo libertário mais empenhado
nos prazeres imediatos do que em hipotéticas compensações post mortem. A vantagem é uma revalorização da vida na terra,
ainda que partindo de pressupostos não necessariamente favoráveis à Terra no
geral e às pessoas em particular. Isto é, para que seja agradável a passagem de
um homem pelo Inferno impõe-se que o Inferno atravessado passe o mais
despercebido possível. E o Inferno, como já alguém disse, são os outros, é o
mundo.
Larguemos, porém, a especulação filosófica, que tende a encalhar em
paradoxos bem menos interessantes do que o nonsense fundido
neste Ferro em Brasa. Os prazeres, já
sabemos, foram há muito definidos e são todos pecado mortal: sexo, drogas e rock’n’roll. Este último não ficou inscrito
na pedra porque ainda não tinha sido inventado à época de João, o Evangelista. Inúmeras
são as referências musicais sugeridas neste livro à laia de banda sonora; inúmeras são, de resto, as referências neste livro que delas se serve tanto
para parodiar o quotidiano como a dita alta literatura, desmontando
ironicamente os vícios de escrita com a prática e a denúncia desses mesmos vícios
(Laurence Sterne foi mestre neste tipo de recurso): «Foi despertado pelo
violento e extasiante embate da onda de Hokusai / (ai, tanta referência) / bem
no meio das trombas» (p. 88). Este aspecto aplica-se igualmente na desmontagem
formal exercida, sobretudo, na Parte IV, intitulada Espiral (ao todo,
são VIII as partes), com capítulos quase integralmente preenchidos por notas de
rodapé, recolhas de aforismos e um hilariante índice «onomástico, retro e
prospectivo, de criaturas respigadas à chamada realidade e a outras ficções
pré-existentes» (p. 115).
O tom é geralmente jocoso, brincalhão, divertido, mas
também culto e poético, de uma cultura e de uma poesia que, deo gratias (ai, tanta locução latina),
não tenta impor pontos de vista ao leitor como consegue sacar-lhe sorrisos,
risos, gargalhadas: «Ezra Pound disse «A poesia é tanto uma “crítica da vida”
como um ferro em brasa é uma crítica do fogo» — e se de modo algum contestamos
este ponto de vista, convém, contudo, contrabalançá-lo, parece-nos, / (ai,
tanta, vírgula) / com a preciosa e desencantada reflexão do árbitro Vítor
Correia: «Desde que vi um porco a andar de bicicleta, já nada me surpreende.»
Até porque se cumpriram, aqui há atrasado, 110 anos sobre a implantação da República,
um triângulo que não é nem equilátero, nem isósceles, nem escaleno, muito pelo
contrário» (pp. 165-166).
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