Há dias, em cavaqueira bem regada entre
amigos, veio à baila o neo-realismo. Disse-lhes que de tudo o que nos legou
esse movimento há pelo menos dois autores imprescindíveis: Soeiro Pereira Gomes
(1909-1949), o dos Esteiros (1941), e
Manuel da Fonseca (1911-1993), o de Cerromaior
(1943). Acrescentei dois de que gosto muito mas que, sendo altamente devedores do
chamado neo-realismo, acabaram por superá-lo na forma e no conteúdo. Referia-me
a José Gomes Ferreira (1900-1985) e a Carlos de Oliveira (1921-1981). Entre outros
que o tempo foi datando, estes conservam uma actualidade inquestionável.
Acrescente-se que isso a que damos o rótulo de neo-realismo, tal como indica o
uso do prefixo, não é senão resultado de uma dinâmica na história da literatura
que já na Grécia Antiga opunha o mito à realidade. É o que distingue, por
exemplo, Homero de Hesíodo. O primeiro ocupou-se dos mitos, o segundo dos
trabalhos e dos dias.
Outra designação para o movimento português da primeira metade do século XX seria a de “realismo social”, podendo este ser caracterizado por uma especial atenção aos fenómenos da realidade política (entendendo-se aqui política em sentido lato, ou seja, vida na pólis). Uma questão a ser formulada é se o neo-realismo ainda faz sentido? A dúvida parte de um princípio porventura não tão consensual quanto possa parecer, o de que existiu um tempo, um certo período histórico, em que tal movimento fez sentido. Terá sido esse o tempo do Estado Novo, meio século de ditadura institucionalizada, marcado pela opressão, dissimulação, censura, perseguição, humilhação. Nesse tempo, o neo-realismo tinha propósitos claros: denunciar a miséria que o Estado ocultava, oferecer voz aos excluídos, acicatar a indignação, combater desigualdades, congregar quem, por esta e aquela razões, não se revisse na moral vigente. Qual seria hoje, a haver algum, o propósito do neo-realismo?
O ambiente social em que vivemos é um desafio constante à sanidade mental. Promove-se massivamente e veladamente a indolência e o niilismo, a capacidade de indignação perante uma injustiça é efémera porque as injustiças são muitas e estão à vista de todos, o que leva a uma fragmentação das atenções e, sobretudo, a uma “banalização do mal” geradora apenas de apatia, torpor, insensibilidade, inacção. É como se para existirmos nos fosse colocado como condição essencial uma síncope continuada. Agir para quê? Não vale a pena. É o que mais se ouve. As liberdades conquistadas dão-se por garantidas mesmo quando diariamente nos apercebemos de que são violadas. Por exemplo, no universo das redes, numa comunicação social militante, numa informação estrategicamente peneirada e pretensiosamente selectiva, em parlamentos que determinam a extradição de denunciantes e o controle rigoroso, através de sistemas informáticos poderosíssimos, de movimentações que questionem as estruturas no poder.
Quem sente necessidade de ter voz neste mundo paradisiacamente infernal em que todos estão ligados uns aos outros numa vozearia tal que ninguém se ouve verdadeiramente? Sentimos ter voz, mas quem nos ouve? O que fizemos do silêncio que torna possível a auscultação? Os deserdados deste mundo, filmados por telemóveis caríssimos, são exibidos indiferentemente como coitadinhos fatalmente destinados à miséria. Circulam imagens dos sem-abrigo nas ruas de Los Angeles ao mesmo tempo e na mesma medida em que se exibem as vítimas da guerra na Ucrânia, sem que isso produza efeitos. Talvez um pouco de comiseração, inútil como lágrimas de crocodilo. A quem chega hoje um poema ou uma romance ou uma qualquer obra literária atenta às contradições do mundo actual?
Um título como Limbo, Inferno e Paraíso. Três Estados Apócrifos (Companhia das Ilhas, Março de 2022) pode ser enganoso se não atendermos à sua condição assumidamente apócrifa e nos ficarmos pela conotação exclusivamente literária à obra de Dante, que já pouco é lido e apenas interessa como fonte inspiradora de cinema fantástico. Nuno Dempster (n. 1944), poeta experimentado, faz questão de nos esclarecer logo à partida, «com a clareza isenta do dia, / que o limbo é um vocábulo / e só se emprega como / refúgio das cidades / e campos assolados pelo mal» (p. 12). Tal como em Ruy Belo (1933-1978), para quem Deus não era senão uma palavra que permitia dar o nome de divinas a certas coisas terrenas, também para Dempster o limbo, o paraíso e o inferno não são senão vocábulos que permitem pensar o curso da história a partir da vida na Terra. Até porque está por provar haver outra para além desta.
Assim sendo, no Limbo encontramos algumas evocações da infância longínqua, marcadas por um bucolismo extinto, pelos amores perdidos num mundo de que se sabe apenas haver falhado. O poema político, se assim podemos dizê-lo, surge logo aí em associações improváveis de um tempo presente com o tempo que passou, determinadas invariavelmente pelo sentimento de injustiça entre os homens e por uma desesperança que não me parece ser injusto tomar como substância central destes poemas: «Baloiçam ramos ao vento de Abril, / e o Sol no mar distante a pôr-se / é a abstracção que o tempo torna breve. / Não faz sentido haver eternidade. / Hoje os sonhos são o mesmo lugar / que outrora não havia, / e o inferno tão-pouco é não os sonhar. / É manterem-se aqui sem mais saída, / com todos a fingir a esperança / e a vozear nas redes / em que estão sozinhos sem o notar» (p. 64).
O segundo conjunto do livro é, porém, aquele em que mais se nota a aproximação a um possível neo-realismo que torna presentes as contradições das relações humanas em rede, o problema do suicídio em países bem colocados nas estatísticas de felicidade, a pandemia e suas já desiludidas páginas de auto-reflexão, a violência doméstica que é uma das vergonhas nacionais deste país sempre muito crítico do que lá fora fazem às mulheres, a exploração laboral de crianças, refugiados, gente com profissões que não a dos livros, cuidadores informais, enfermeiros, mulheres e homens que ganham a vida a limpar o lixo produzido pelos demais. Os poetas e os livros também têm direito a um poema, aquele que merecem: «Da nossa vida em tempo alegre / ficam os livros todos em depósito, / uns em cima dos outros, / sem nenhuma ordem, / até o mais louvado, / esse que os académicos supõem / dar prestígio à nação, embora / no livro nada diga / que o autor gastava a luz / no inferno em busca de outra escrita, / ou lembrasse ser ele o tempo / a nova circunstância que o tornava / diverso dos restantes, / agora todos juntos / na grande biblioteca, / os livros e os poetas que morreram» (p. 77).
Muitos destes poemas contam-nos histórias, pequenas histórias contadas em verso, de vidas próximas e de outras cuja proximidade não é tão evidente. A dificuldade que nos colocam é a mesma que nos coloca a realidade hoje em dia, isto é, está sempre a parecer-nos irreal. O Paraíso de Nuno Dempster não é feito de idílios, apenas prolonga a natural diagnose do Limbo e do Inferno, registando atropelos, apoiando-se em factos históricos, desmontando os logros do logos, colocando a um mesmo nível de análise tudólogos e papas. Um poema mais longo do que os restantes mereceria aqui ser citado na íntegra, é o 31 desse Paraíso com a configuração de “colapso urbano”. A prosa vai longa, pelo que deixá-lo-ei para outra ocasião. Comprem o livro se ainda vos restar interesse e trocos na carteira.
Outra designação para o movimento português da primeira metade do século XX seria a de “realismo social”, podendo este ser caracterizado por uma especial atenção aos fenómenos da realidade política (entendendo-se aqui política em sentido lato, ou seja, vida na pólis). Uma questão a ser formulada é se o neo-realismo ainda faz sentido? A dúvida parte de um princípio porventura não tão consensual quanto possa parecer, o de que existiu um tempo, um certo período histórico, em que tal movimento fez sentido. Terá sido esse o tempo do Estado Novo, meio século de ditadura institucionalizada, marcado pela opressão, dissimulação, censura, perseguição, humilhação. Nesse tempo, o neo-realismo tinha propósitos claros: denunciar a miséria que o Estado ocultava, oferecer voz aos excluídos, acicatar a indignação, combater desigualdades, congregar quem, por esta e aquela razões, não se revisse na moral vigente. Qual seria hoje, a haver algum, o propósito do neo-realismo?
O ambiente social em que vivemos é um desafio constante à sanidade mental. Promove-se massivamente e veladamente a indolência e o niilismo, a capacidade de indignação perante uma injustiça é efémera porque as injustiças são muitas e estão à vista de todos, o que leva a uma fragmentação das atenções e, sobretudo, a uma “banalização do mal” geradora apenas de apatia, torpor, insensibilidade, inacção. É como se para existirmos nos fosse colocado como condição essencial uma síncope continuada. Agir para quê? Não vale a pena. É o que mais se ouve. As liberdades conquistadas dão-se por garantidas mesmo quando diariamente nos apercebemos de que são violadas. Por exemplo, no universo das redes, numa comunicação social militante, numa informação estrategicamente peneirada e pretensiosamente selectiva, em parlamentos que determinam a extradição de denunciantes e o controle rigoroso, através de sistemas informáticos poderosíssimos, de movimentações que questionem as estruturas no poder.
Quem sente necessidade de ter voz neste mundo paradisiacamente infernal em que todos estão ligados uns aos outros numa vozearia tal que ninguém se ouve verdadeiramente? Sentimos ter voz, mas quem nos ouve? O que fizemos do silêncio que torna possível a auscultação? Os deserdados deste mundo, filmados por telemóveis caríssimos, são exibidos indiferentemente como coitadinhos fatalmente destinados à miséria. Circulam imagens dos sem-abrigo nas ruas de Los Angeles ao mesmo tempo e na mesma medida em que se exibem as vítimas da guerra na Ucrânia, sem que isso produza efeitos. Talvez um pouco de comiseração, inútil como lágrimas de crocodilo. A quem chega hoje um poema ou uma romance ou uma qualquer obra literária atenta às contradições do mundo actual?
Um título como Limbo, Inferno e Paraíso. Três Estados Apócrifos (Companhia das Ilhas, Março de 2022) pode ser enganoso se não atendermos à sua condição assumidamente apócrifa e nos ficarmos pela conotação exclusivamente literária à obra de Dante, que já pouco é lido e apenas interessa como fonte inspiradora de cinema fantástico. Nuno Dempster (n. 1944), poeta experimentado, faz questão de nos esclarecer logo à partida, «com a clareza isenta do dia, / que o limbo é um vocábulo / e só se emprega como / refúgio das cidades / e campos assolados pelo mal» (p. 12). Tal como em Ruy Belo (1933-1978), para quem Deus não era senão uma palavra que permitia dar o nome de divinas a certas coisas terrenas, também para Dempster o limbo, o paraíso e o inferno não são senão vocábulos que permitem pensar o curso da história a partir da vida na Terra. Até porque está por provar haver outra para além desta.
Assim sendo, no Limbo encontramos algumas evocações da infância longínqua, marcadas por um bucolismo extinto, pelos amores perdidos num mundo de que se sabe apenas haver falhado. O poema político, se assim podemos dizê-lo, surge logo aí em associações improváveis de um tempo presente com o tempo que passou, determinadas invariavelmente pelo sentimento de injustiça entre os homens e por uma desesperança que não me parece ser injusto tomar como substância central destes poemas: «Baloiçam ramos ao vento de Abril, / e o Sol no mar distante a pôr-se / é a abstracção que o tempo torna breve. / Não faz sentido haver eternidade. / Hoje os sonhos são o mesmo lugar / que outrora não havia, / e o inferno tão-pouco é não os sonhar. / É manterem-se aqui sem mais saída, / com todos a fingir a esperança / e a vozear nas redes / em que estão sozinhos sem o notar» (p. 64).
O segundo conjunto do livro é, porém, aquele em que mais se nota a aproximação a um possível neo-realismo que torna presentes as contradições das relações humanas em rede, o problema do suicídio em países bem colocados nas estatísticas de felicidade, a pandemia e suas já desiludidas páginas de auto-reflexão, a violência doméstica que é uma das vergonhas nacionais deste país sempre muito crítico do que lá fora fazem às mulheres, a exploração laboral de crianças, refugiados, gente com profissões que não a dos livros, cuidadores informais, enfermeiros, mulheres e homens que ganham a vida a limpar o lixo produzido pelos demais. Os poetas e os livros também têm direito a um poema, aquele que merecem: «Da nossa vida em tempo alegre / ficam os livros todos em depósito, / uns em cima dos outros, / sem nenhuma ordem, / até o mais louvado, / esse que os académicos supõem / dar prestígio à nação, embora / no livro nada diga / que o autor gastava a luz / no inferno em busca de outra escrita, / ou lembrasse ser ele o tempo / a nova circunstância que o tornava / diverso dos restantes, / agora todos juntos / na grande biblioteca, / os livros e os poetas que morreram» (p. 77).
Muitos destes poemas contam-nos histórias, pequenas histórias contadas em verso, de vidas próximas e de outras cuja proximidade não é tão evidente. A dificuldade que nos colocam é a mesma que nos coloca a realidade hoje em dia, isto é, está sempre a parecer-nos irreal. O Paraíso de Nuno Dempster não é feito de idílios, apenas prolonga a natural diagnose do Limbo e do Inferno, registando atropelos, apoiando-se em factos históricos, desmontando os logros do logos, colocando a um mesmo nível de análise tudólogos e papas. Um poema mais longo do que os restantes mereceria aqui ser citado na íntegra, é o 31 desse Paraíso com a configuração de “colapso urbano”. A prosa vai longa, pelo que deixá-lo-ei para outra ocasião. Comprem o livro se ainda vos restar interesse e trocos na carteira.
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