Em seis meses, mais coisa menos coisa,
dois livros de Paul Éluard (1895-1952) traduzidos para português. Se há algo
que explique tamanho interesse para além da relevância da poesia de Éluard, é
fenómeno que me escapa. Em Agosto do ano passado, a editora Barco Bêbado disponibilizou,
com tradução de Luís Lima, o livro “A Cama A Mesa”. Em Março deste ano, a
editora Exclamação inaugurou uma nova colecção, coordenada por Regina Guimarães
e Rui Manuel Amaral, com “O Homem Inacabado”, colectânea seleccionada a partir
dos livros que compõem uma “primeira fase” na poesia do poeta de “Liberté”
(1942). Se já tínhamos acesso à vertente porventura mais socialmente empenhada
desta poesia, a de uma putativa “segunda fase”, passamos agora a ter em mãos
uma recolha deveras agradável de um período que vai de 1917, ano da publicação
de “O Devir e a Inquietude”, a 1936, data que assinala a edição de “Os Olhos
Férteis”, mas também a exclusão do Partido Comunista Francês e os preliminares
de uma guerra mundial absolutamente devastadora. Guernica, recorde-se, foi
bombardeada em 1937. São, portanto, os anos da famigerada relação com a jovem
russa Elena Ivanovna Diakonova, mais tarde celebrizada como Gala Éluard Dalí,
e, a partir de 1934, do casamento com a modelo e performer Nusch Éluard. Não o
refiro por mera curiosidade fetichista, mas porque muitos destes poemas estão claramente
associados à experiência amorosa. Isso é óbvio em “O Amor A Poesia”, dedicado a
Gala, ou em “Noites Partilhadas”, onde deparamos com um poema como este:
NUSCH
Os sentimentos aparentes
A leveza do aproximar
A cabeleira das carícias.
Sem suspeita sem temor
Os teus olhos estão entregues ao que vêem
Vistos por aquilo que olham.
Confiança de cristal
Entre dois espelhos
De noite os teus olhos perdem-se
Para juntar o despertar ao desejo.
Resistamos, porém, à tentação de restringir
estes poemas à «obsessão da paixão amorosa», expressão usada por Regina
Guimarães num texto final em que é oferecida uma leitura singular do modo
como o desejo e o afecto foi aqui plasmado em, e passo a citar, «figuras, quase
infames, de mulher-criança / nas quais a pessoa do sujeito poético se prolonga
/ qual guerreiro em terreno conquistado» (p. 240). Julgando entender o alcance
desta leitura, tendo a discordar dela. O poeta da liberdade que foi Éluard é
inseparável do poeta do amor. Ambas as dimensões, amor e liberdade, se
confundem na sua poesia, desde logo, enquanto programa do próprio surrealismo. Não
creio que seja correcto falar de uma “figura de mulher” neste contexto, como é
possível fazê-lo, por exemplo, a respeito de um poeta como Cesare Pavese,
parecendo-me mais justo ler a mulher e o feminino aqui simplesmente enquanto
objecto de desejo tão inquietante como qualquer outro objecto desejo. Tal como
o desejo de liberdade o é também, nesse sentido de desafiar o equilíbrio, a
harmonia, abalando os pilares morais de uma civilização que coloca espartilhos
no amor. O que aqui parece estar em causa é, portanto, a liberdade de amar, não
necessariamente uma concepção, mais ou menos imagética, do objecto amoroso. Daí
que me pareça estarmos face ao que poderíamos denominar de arte poética ao
lermos este poema da página 187:
CRÍTICA DA POESIA
Como é óbvio, odeio o reinado dos
burgueses
O reinado dos bófias e dos padres
Mas ainda odeio mais o homem que não o
odeia
Como eu odeio
Com todas as suas forças.
Cuspo na cara do homem insuportavelmente
pequenino
Que a todos os meus poemas não prefere
esta Crítica da poesia.
De igual modo, ao ler o poema “A Perder
de Vista no Sentido do Meu Corpo”, onde o título desta antologia foi respigado,
ressalta a inquietação gerada pela noção de que o mundo é
contraditório, ambíguo e ambivalente, composto por desequilíbrios e
imperfeições, anomalias. A sublimação do feminino, na pessoa da mulher amada,
corresponde a um ideal de perfeição que se tem consciência de não passar
de algo irrealizável, pois a vida trai essa realização. «O amor é o homem
inacabado» na medida em que esse amor aniquila a ideia de unidade. Amar é desejar
o outro enquanto complementaridade, a mais forte prova de que nos falta alguma
coisa é desejarmos essa coisa. Éluard teve noção disso em múltiplos domínios da
sua vida, no político e no amoroso, mas também no artístico. Não nos esqueçamos
de que, em 1938, o seu amigo Max Ernst, evocado nesta antologia nos textos em
prosa que compõem “As Infelicidades dos Imortais”, abandonou o grupo surrealista
depois de ser instigado a sabotar a poesia de Paul Éluard. Ela aí está, mais
viva do que daqueles que o traíram.
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