sábado, 27 de agosto de 2022

O HOMEM INACABADO

 


Em seis meses, mais coisa menos coisa, dois livros de Paul Éluard (1895-1952) traduzidos para português. Se há algo que explique tamanho interesse para além da relevância da poesia de Éluard, é fenómeno que me escapa. Em Agosto do ano passado, a editora Barco Bêbado disponibilizou, com tradução de Luís Lima, o livro “A Cama A Mesa”. Em Março deste ano, a editora Exclamação inaugurou uma nova colecção, coordenada por Regina Guimarães e Rui Manuel Amaral, com “O Homem Inacabado”, colectânea seleccionada a partir dos livros que compõem uma “primeira fase” na poesia do poeta de “Liberté” (1942). Se já tínhamos acesso à vertente porventura mais socialmente empenhada desta poesia, a de uma putativa “segunda fase”, passamos agora a ter em mãos uma recolha deveras agradável de um período que vai de 1917, ano da publicação de “O Devir e a Inquietude”, a 1936, data que assinala a edição de “Os Olhos Férteis”, mas também a exclusão do Partido Comunista Francês e os preliminares de uma guerra mundial absolutamente devastadora. Guernica, recorde-se, foi bombardeada em 1937. São, portanto, os anos da famigerada relação com a jovem russa Elena Ivanovna Diakonova, mais tarde celebrizada como Gala Éluard Dalí, e, a partir de 1934, do casamento com a modelo e performer Nusch Éluard. Não o refiro por mera curiosidade fetichista, mas porque muitos destes poemas estão claramente associados à experiência amorosa. Isso é óbvio em “O Amor A Poesia”, dedicado a Gala, ou em “Noites Partilhadas”, onde deparamos com um poema como este:  
 
NUSCH
 
Os sentimentos aparentes
A leveza do aproximar
A cabeleira das carícias.
 
Sem suspeita sem temor
Os teus olhos estão entregues ao que vêem
Vistos por aquilo que olham.
 
Confiança de cristal
Entre dois espelhos
De noite os teus olhos perdem-se
Para juntar o despertar ao desejo.
 
Resistamos, porém, à tentação de restringir estes poemas à «obsessão da paixão amorosa», expressão usada por Regina Guimarães num texto final em que é oferecida uma leitura singular do modo como o desejo e o afecto foi aqui plasmado em, e passo a citar, «figuras, quase infames, de mulher-criança / nas quais a pessoa do sujeito poético se prolonga / qual guerreiro em terreno conquistado» (p. 240). Julgando entender o alcance desta leitura, tendo a discordar dela. O poeta da liberdade que foi Éluard é inseparável do poeta do amor. Ambas as dimensões, amor e liberdade, se confundem na sua poesia, desde logo, enquanto programa do próprio surrealismo. Não creio que seja correcto falar de uma “figura de mulher” neste contexto, como é possível fazê-lo, por exemplo, a respeito de um poeta como Cesare Pavese, parecendo-me mais justo ler a mulher e o feminino aqui simplesmente enquanto objecto de desejo tão inquietante como qualquer outro objecto desejo. Tal como o desejo de liberdade o é também, nesse sentido de desafiar o equilíbrio, a harmonia, abalando os pilares morais de uma civilização que coloca espartilhos no amor. O que aqui parece estar em causa é, portanto, a liberdade de amar, não necessariamente uma concepção, mais ou menos imagética, do objecto amoroso. Daí que me pareça estarmos face ao que poderíamos denominar de arte poética ao lermos este poema da página 187:
 
CRÍTICA DA POESIA
 
Como é óbvio, odeio o reinado dos burgueses
O reinado dos bófias e dos padres
Mas ainda odeio mais o homem que não o odeia
Como eu odeio
Com todas as suas forças.
 
Cuspo na cara do homem insuportavelmente pequenino
Que a todos os meus poemas não prefere esta Crítica da poesia.

De igual modo, ao ler o poema “A Perder de Vista no Sentido do Meu Corpo”, onde o título desta antologia foi respigado, ressalta a inquietação gerada pela noção de que o mundo é contraditório, ambíguo e ambivalente, composto por desequilíbrios e imperfeições, anomalias. A sublimação do feminino, na pessoa da mulher amada, corresponde a um ideal de perfeição que se tem consciência de não passar de algo irrealizável, pois a vida trai essa realização. «O amor é o homem inacabado» na medida em que esse amor aniquila a ideia de unidade. Amar é desejar o outro enquanto complementaridade, a mais forte prova de que nos falta alguma coisa é desejarmos essa coisa. Éluard teve noção disso em múltiplos domínios da sua vida, no político e no amoroso, mas também no artístico. Não nos esqueçamos de que, em 1938, o seu amigo Max Ernst, evocado nesta antologia nos textos em prosa que compõem “As Infelicidades dos Imortais”, abandonou o grupo surrealista depois de ser instigado a sabotar a poesia de Paul Éluard. Ela aí está, mais viva do que daqueles que o traíram.

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