Dois livros bastante diferentes um do
outro, publicados ambos este ano: “A Poesia Ri Unida” (Eufeme, Maio de 2022) e “Lengas
e Narrativas” (Edições Húmus, Junho de 2022). Comecemos pelo primeiro. Tal como
o título indica, num humor desimportantizante característico do autor, trata-se
de uma reunião, não da obra anteriormente editada em livro, mas de poemas
dispersos por revistas publicadas entre 2009 e 2021. A excepção é um inédito
intitulado “Dores”, poema pungente em que o mal-estar contagioso da actualidade
vem à tona com fúria desmedida: «e eu sem potência para apagar filhos da puta»
(p. 37). Não é comum nesta poesia temperaturas coléricas tão elevadas, sendo mais frequente o recurso ao riso enquanto sabotagem da realidade decadente
e de um quotidiano pulverizado de personagens por vezes picarescas, noutras
ocasiões risíveis, amiudadamente desvalidas. Portanto, a poesia que ri neste
volume transborda os domínios da ironia e da sátira reconhecíveis noutros
momentos da obra de António Ferra (n. 1947). Mantém-se, no geral, a paisagem
suburbana enquanto palco privilegiado das observações do sujeito poético,
mergulhado num “modo funcionário de viver” onde recolhe quadros de uma
actualidade estrangeirada. O teatro é o da «tirania / num campo de refugiados
suburbanos» (p. 11), por vezes em poemas sequenciais que retratam com linguagem
militantemente coloquial «o constrangimento dos sonhos, / a severidade das sombras»
(p. 48).
Dá-se especial atenção nestes poemas aos pobres, aos excluídos, aos exilados, aos
humilhados e ofendidos, a essa massa de gente infinda usada e usurpada pelas
forças que dessa gente se servem esgotando-a, tornando-a impotente e incapaz. É
curioso, mais ainda pela dispersão inerente ao conjunto, como em diversos destes
poemas surge essa imagem de fraqueza que vai do sentimento de «culpa de não
combater» (p. 11) à falta de «voz para gritar a injustiça» (p. 48),
desembocando no apelo quase desesperado do poema “Contaminação”: «não feches o
riso / que se abre nas tuas mãos abertas, / não feches o grito de revolta /
quando a janela se abre aos odores de um fogo extinto» (p. 52). Uma dúvida a
esclarecer: o riso é arma ao serviço da revolta ou solução para a impotência?
Bem
diferente, em todos os aspectos, é o segundo livro acima aludido, introduzido
por uma explicação prévia à laia de prefácio: «Trata-se de poemas com
deliberada intenção de trazer à luz os mais sombrios actos criativos — e
caritativos — das palavras, dançando ao ritmo cardíaco dos versos estampados,
não negando, todavia, a forte influência de uma corrente barroca, e
neoclássica, surrealmente presente nos critérios de recolecção dos versos que
integram a antologia “lengas e narrativas”». Neste caso, o espaço de representação
confunde-se com a pura experimentação formal. Mais maneiristas do que barrocos,
estes poemas afirmam-se pelos desequilíbrios, pelos exageros expressivos, aqui
grotescos, acolá burlescos, gozando de uma variedade (in)formal que vai da
redondilha à canção. São experiências lúdicas com palavras, a linguagem poética
cedendo ao gozo dos efeitos fonéticos — «a salsugem dos barcos / a penugem dos
braços» — e polissémicos, jogo que não prescinde do seu inventário intensivo de
caricaturas: «o pobre de porshe» (p. 10), «o rico sem cheta» (p. 12), «os ais
obscenos / de suínos urbanos» (p. 31), «o mendigo enganado / o bardo e o frade
/ de cotão no umbigo / e espinho do cardo // o carneiro inchado / a donzela
porreira / de seio fanado / e liga de freira // o cilício de nastro / o amante
filtrado / o cu de alabastro / da alcoviteira» (p. 41).
Ao barroco foi António
Ferra buscar certa pompa para a desmontar e desfazer ironicamente, nomeadamente
ao minar modelos métricos, ao grafitar o luxo das imagens com o corriqueiro,
apostando em conceitos rebuscados e títulos extensos: «de autor anónimo (sec. XVIII)
publicado na Gazeta «O Furjão» em depósito na biblioteca da Junta de Freguesia
de Albergaria de Loivã» (p. 33). Tudo isto é escárnio da pompa e da
circunstância, dos efeitos supérfluos e palavrosos, da cagança espaventosa e da
solenidade que, em pleno século XXI, se conserva intacta no espírito e nos
comportamentos de uma horda de artistas eximiamente distribuídos pelas diversas
instituições nacionais. Fique, a título de exemplo, a «efémera fama de um
opinion maker»:
a efémera fama
tua alma aclama
na tua lama
a tarântula branca
anémona plana
numa feira franca
tua alma acalma
a efémera fama
abre o melodrama
alimenta a chama
da boca que trama
tua alma aclama
a tua boca brama
tua efémera fama
tua alma aclama
a tarântula branca
anémona plana
numa feira franca
a efémera fama
abre o melodrama
alimenta a chama
da boca que trama
a tua boca brama
tua efémera fama
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