quarta-feira, 28 de setembro de 2022

TEARS COME FROM HEAVEN (1965)

 


Sentada no tronco de uma árvore abatida, observa os carros que circulam em direcções opostas fazendo sinais de luzes, buzinando amiúde, reduzindo a velocidade para logo acelerarem bruscamente. Espera por uma viatura que estacione a seu lado, um vidro a abrir-se por alguém que pergunte: beijinhos, quanto é? Enquanto ninguém pára, ela mantém-se numa posição mais discreta do que seria suposto em quem faz do corpo isco para matar a fome. Por vezes assemelha-se a um desses trabalhadores rurais que descansam pensativamente à sombra de uma árvore, membros superiores sustentados sobre as pernas dobradas, as mãos cruzadas à frente dos joelhos, a cabeça inclinada para o chão. A certa altura pareceu-me vê-la fechar os olhos. Foi nesse instante que lhe ouvi o pensamento, instante que me pareceu eterno, sem raiva nem frustração a tingir as imagens e os sons formando-se no interior da mente: ossos brotando da terra como flores a desabrochar, corolas abrindo-se na ponta dos ossos e no androceu um sangue espesso que abelhas mugindo como vacas lambiam avidamente. Blackout. Do escuro proveio um som luminoso como o relâmpago numa noite de tempestade, um som que não era de trovoada nem de vento nem de chuva a cair, um som lento e arrastado talvez como a água de um ribeiro quase seco dissipando-se até aos últimos pingos de uma fonte ressequida. Depois, com os olhos ainda fechados, ouvi-a assobiar qualquer coisa que me pareceu ser do baterista Pete La Roca. Como é possível? — pensei. Não que assobiasse tão bem nem que fossem tão clarividentes os seus pensamentos, mas como era possível eu ouvi-los e, ouvindo-os, vê-los? Onde estava eu? Onde me encontrava? Fora ou dentro dela?

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