sexta-feira, 23 de setembro de 2022

UM ESPELHO DO GALEANO

 


É PROIBIDO RIR
 
As antigas festas dos ciclos da natureza chamam-se agora Natal e Semana Santa, e já não são homenagens aos deuses pagãos, mas rituais solenes de veneração à divindade que ocupou esses dias e se apoderou dos símbolos pagãos.
As Hilárias, herdadas ou inventadas por Roma, saudavam a chegada da Primavera. A deusa Cibele banhava-se no rio, enquanto os romanos, vestidos com roupas caricatas, se rebolavam de riso. Todos troçavam de todos e não havia no mundo nada nem ninguém que não fosse digno de riso.
Por decisão da Igreja católica, esta festa pagã da hilaridade, que festejava a ressurreição da primavera através do riso, coincide em Março, mais dia, menos dia, com a ressurreição de Jesus, de quem os evangelhos não registam uma única gargalhada.
E, por decisão da Igreja, o Vaticano foi construído no local exacto onde culminava a festa da alegria. Aí, na praça ampla onde ecoavam as gargalhadas da multidão, ouve-se agora a voz grave do papa a ler páginas da Bíblia, um livro onde nunca ninguém se ri.

 
Eduardo Galeano (1940-2015), in “Espelhos – Uma história quase universal”, tradução de Helena Pitta, Antígona, Junho de 2018.

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