Que lugar
ocupa a poesia nos 40 anos de vida literária recentemente celebrados por Luís
Carmelo (1954)? É verdade que se estreou em 1981 com um livro de poemas, “Fio
de Prumo”. E ainda antes do primeiro romance, editado em 1986, descobrimos na
sua bibliografia outros dois livros arrumados na secção de poesia: “Vão
Interior do Rio” (1982) e “Ângulo Raso” (1983). Seguiu-se um hiato de 32 anos, preenchido com a publicação, em 2015, de “Mymosidades”. Este retorno à poesia, passadas
três décadas a publicar romances e ensaios, conheceu nos anos mais recentes uma
enérgica dedicação. Carmelo não só passou a publicar os seus poemas, como se
tornou editor dos poemas de outros através da iniciativa editorial com o nome Nova
Mymosa. Decorridos 40 anos sobre a estreia, a decisão de dar à estampa, por
assim dizer, três volumes distintos num mesmo momento, responde à natureza
multímoda do trabalho levado a cabo pelo autor. “Biografia do Mundo” (Abysmo,
Maio de 2022) é, curiosamente, o mais extenso da trilogia reunida sob o título genérico
de Órbita. Os outros dois são "Visão Aproximada”, uma narrativa
biográfica, e “Respiração Pensada”, um ensaio.
Responder com exactidão à dúvida inicial obrigaria a uma perscrutação exaustiva do modo como a poesia se relaciona com os outros géneros no percurso do autor, labor que não estou em condições de concretizar nem aqui seria possível sintetizar. Atenho-me à “Biografia do Mundo”, título que poderá sugerir uma ambição desmesurada. Como escrever a biografia do mundo? Começar por onde? Este é, sem dúvida, um livro exigente, não apenas pela extensão como pela tarefa a que se propõe. Somos porém surpreendidos, desde logo, ao percorrer-lhe o índice, rapidamente concluindo, pelos títulos dos poemas, poder haver ali uma distribuição cronológica que sugere uma viagem pela história das ideias. Parodicamente organizados como uma epopeia, os dez cantos desta biografia correspondem, grosso modo, a uma possível linha do tempo pautada por momentos históricos facilmente identificáveis. Começa nos pré-socráticos, sob a designação “Antepassados”, e termina na pós-humanidade (penso em Fukuyama, evocado no poema 6 da Canto X), sob o título “Espectáculos” (“A Sociedade do Espectáculo”, de Guy Debord, será porventura o marco histórico mais determinante nesta secção).
Digamos que este respeito cronológico pela historiografia oficial é susceptível de discussão. Uma crítica que lhe podemos fazer tem que ver, precisamente, com a opção por um começo que aparentemente exclui, mais uma vez, toda uma herança mitológica e de pensamento altamente criativo anterior aos pré-socráticos. Porque não começar pelo Antigo Egipto ou pelo “Épico de Gilgamés”? Porquê dar início à digressão por esse lugar de onde sempre partimos para a ele sempre regressarmos? Reconheça-se, porém, que o primeiro poema do livro, intitulado “Noite”, acaba por remeter-nos para esse tempo anterior à consciência que hoje temos do tempo, ou seja, para o caos anterior à criação, o de uma relação singular de espanto com a natureza, um tempo de assombro e de assombrações: «A noite estrelada que me observa do topo / lisa e negra (…) // diz-me que não sou eu que olho / que sou antes a coisa olhada (…)» (p. 7). Foi nesse caos nocturno que as ideias começaram a fervilhar, talvez seja para ele que devamos olhar mais profundamente quando pensamos e reflectimos a gestação do pensamento.
Iniciando pelos pré-socráticos, esta “Biografia do Mundo” sugere-nos um começo que não estou certo de haver existido. Todo e qualquer começo é sempre consequência e efeito antes de se haver tornado causa. Há sempre um começo anterior ao começo, essa percepção temo-la concentrando o olhar numa primitividade da qual, afinal, não são assim tão escassos os sinais. Os dez cantos que compõem o livro partem da noite estrelada que nos observa para logo nos mergulharem no mar agitado das ideias conscientes de si mesmas, colocando-se o sujeito poético na posição de guia que faz ressoar em nós as marcas que o marcaram ao longo da vida. No fundo, estamos na presença de um itinerário intelectual desenhado por uma espécie de demiurgo que, ao serviço do leitor, sublinha o poder dos instantes, convocando autores e as suas teses ou episódios biográficos a eles imputados. A “Biografia do Mundo” é, portanto, uma biografia dos ideólogos do mundo, pensadores e cientistas, filósofos e poetas, artistas com os quais o autor dos poemas "conviveu" intelectualmente ao longo da sua vida.
Sendo uma biografia intelectual, está longe de pretender ser uma biografia do intelecto. O que pretendo dizer com isto? Paradoxalmente, estes poemas são mais “carnais” do que tal dispositivo possa levar a crer. As ideias convocadas pelos poemas, e poesia significa, antes de mais, criação, oferecem-nos uma visão cosmológica do mundo que não desfaz o mistério, antes o exalta relembrando a condição efémera e ínfima do indivíduo. «Toda a grande poesia é uma cosmologia», declarou Ruy Belo numa das entrevistas coligidas no terceiro volume da sua Obra Poética. Esta biografia é uma cosmologia que releva o lugar precário do homem, a despeito de feitos individuais, na vastidão do universo e no redemoinho do tempo. É uma postura que me agrada particularmente, mais ainda num momento histórico em que, parecendo faltar aos homens a noção efectiva de quão passageira é a vida, se ocupam estes de a desperdiçar destruindo o que ainda sobre para destruir. Mais curioso se torna verificar que isto seja feito com um grau de exigência a que já não estamos habituados e, por isso, muitas vezes nos impele a resistências sem sentido .
Com os poemas deste livro regressamos à Grécia Antiga, ao “Antigo Testamento”, percorremos a Idade Média até ao Renascimento, detemo-nos no Iluminismo e no Romantismo, chegamos à Modernidade, entramos na Pós-Modernidade, vamos até às sociedades de consumo desenfreado, as do espectáculo e da clonagem e das conexões virtuais e da covid-19. O último poema, precisamente intitulado “Covid”, demarca uma condição pandémica da actualidade que não se fica pelo coronavírus: «não é apenas a língua que subjuga / as fontes de incubação / é também a boca vermelha e ensanguentada / do pargo deitado na travessa do almoço / depois de tirar a máscara e espirrar a Índia inteira / e o cheiro do caril que sai pela loja da frente» (p. 354). Um dos aspectos mais interessantes destes textos é a capacidade que têm de fintar preconceitos e desmontar ideias feitas acerca das premissas poéticas que, à partida, julgaríamos estarem na sua origem, pelo que durante a digressão não se espante quem der com um poema sobre a natureza da linguagem (“Nomes”) ao lado de outro em que a linguagem nos aparece reinventada (“Primavera”), uma poema de tipo esotérico (“Apocalipses”) próximo de outro altamente erótico (“Catulo”), um poema socialmente crítico (“Gasset”) antes de outro despudoradamente satírico (“Tipo”). Digamos que em matéria de ambiente ou clima, a diversidade é aqui uma inegável mais-valia.
Luís Carmelo recorre a conceitos típicos da filosofia e das ciências naturais, enxerta referências biográficas nos poemas, não se furta à experimentação variando na forma e nos modos de dizer. Entre as interpelações que mais me tocaram ao ler este livro, destaco duas: o que diferencia cada indivíduo no seio da multidão?; quais os métodos de Deus que explicam o funcionamento da máquina-mundo? Ao afirmar, no início, ser este um livro exigente, não foi no sentido de que seja hermético, que não é, mas antes nesse sentido que outros livros, quer pela extensão formal, quer pela abrangência de temas, demonstram ter. São obras que propõem uma cosmologia, modos de ver o mundo, escapando por completo à condição tantas vezes decorativa dos livros de poesia. Esta “Biografia do Mundo” é actual na linguagem, ousada na forma, pertinente no conteúdo e coloca-nos, por fim, o problema recorrente do género. Onde arrumá-lo? Em que prateleira? É poesia, certamente, mas não deixa de ser também ensaio. Para o efeito, sugere-se a leitura do poema “Jogos”. Começa assim: «Um poema que é um ensaio / não é nunca um ensaio que é um poema» (p. 313). Russell e Wittgenstein explicam.
Responder com exactidão à dúvida inicial obrigaria a uma perscrutação exaustiva do modo como a poesia se relaciona com os outros géneros no percurso do autor, labor que não estou em condições de concretizar nem aqui seria possível sintetizar. Atenho-me à “Biografia do Mundo”, título que poderá sugerir uma ambição desmesurada. Como escrever a biografia do mundo? Começar por onde? Este é, sem dúvida, um livro exigente, não apenas pela extensão como pela tarefa a que se propõe. Somos porém surpreendidos, desde logo, ao percorrer-lhe o índice, rapidamente concluindo, pelos títulos dos poemas, poder haver ali uma distribuição cronológica que sugere uma viagem pela história das ideias. Parodicamente organizados como uma epopeia, os dez cantos desta biografia correspondem, grosso modo, a uma possível linha do tempo pautada por momentos históricos facilmente identificáveis. Começa nos pré-socráticos, sob a designação “Antepassados”, e termina na pós-humanidade (penso em Fukuyama, evocado no poema 6 da Canto X), sob o título “Espectáculos” (“A Sociedade do Espectáculo”, de Guy Debord, será porventura o marco histórico mais determinante nesta secção).
Digamos que este respeito cronológico pela historiografia oficial é susceptível de discussão. Uma crítica que lhe podemos fazer tem que ver, precisamente, com a opção por um começo que aparentemente exclui, mais uma vez, toda uma herança mitológica e de pensamento altamente criativo anterior aos pré-socráticos. Porque não começar pelo Antigo Egipto ou pelo “Épico de Gilgamés”? Porquê dar início à digressão por esse lugar de onde sempre partimos para a ele sempre regressarmos? Reconheça-se, porém, que o primeiro poema do livro, intitulado “Noite”, acaba por remeter-nos para esse tempo anterior à consciência que hoje temos do tempo, ou seja, para o caos anterior à criação, o de uma relação singular de espanto com a natureza, um tempo de assombro e de assombrações: «A noite estrelada que me observa do topo / lisa e negra (…) // diz-me que não sou eu que olho / que sou antes a coisa olhada (…)» (p. 7). Foi nesse caos nocturno que as ideias começaram a fervilhar, talvez seja para ele que devamos olhar mais profundamente quando pensamos e reflectimos a gestação do pensamento.
Iniciando pelos pré-socráticos, esta “Biografia do Mundo” sugere-nos um começo que não estou certo de haver existido. Todo e qualquer começo é sempre consequência e efeito antes de se haver tornado causa. Há sempre um começo anterior ao começo, essa percepção temo-la concentrando o olhar numa primitividade da qual, afinal, não são assim tão escassos os sinais. Os dez cantos que compõem o livro partem da noite estrelada que nos observa para logo nos mergulharem no mar agitado das ideias conscientes de si mesmas, colocando-se o sujeito poético na posição de guia que faz ressoar em nós as marcas que o marcaram ao longo da vida. No fundo, estamos na presença de um itinerário intelectual desenhado por uma espécie de demiurgo que, ao serviço do leitor, sublinha o poder dos instantes, convocando autores e as suas teses ou episódios biográficos a eles imputados. A “Biografia do Mundo” é, portanto, uma biografia dos ideólogos do mundo, pensadores e cientistas, filósofos e poetas, artistas com os quais o autor dos poemas "conviveu" intelectualmente ao longo da sua vida.
Sendo uma biografia intelectual, está longe de pretender ser uma biografia do intelecto. O que pretendo dizer com isto? Paradoxalmente, estes poemas são mais “carnais” do que tal dispositivo possa levar a crer. As ideias convocadas pelos poemas, e poesia significa, antes de mais, criação, oferecem-nos uma visão cosmológica do mundo que não desfaz o mistério, antes o exalta relembrando a condição efémera e ínfima do indivíduo. «Toda a grande poesia é uma cosmologia», declarou Ruy Belo numa das entrevistas coligidas no terceiro volume da sua Obra Poética. Esta biografia é uma cosmologia que releva o lugar precário do homem, a despeito de feitos individuais, na vastidão do universo e no redemoinho do tempo. É uma postura que me agrada particularmente, mais ainda num momento histórico em que, parecendo faltar aos homens a noção efectiva de quão passageira é a vida, se ocupam estes de a desperdiçar destruindo o que ainda sobre para destruir. Mais curioso se torna verificar que isto seja feito com um grau de exigência a que já não estamos habituados e, por isso, muitas vezes nos impele a resistências sem sentido .
Com os poemas deste livro regressamos à Grécia Antiga, ao “Antigo Testamento”, percorremos a Idade Média até ao Renascimento, detemo-nos no Iluminismo e no Romantismo, chegamos à Modernidade, entramos na Pós-Modernidade, vamos até às sociedades de consumo desenfreado, as do espectáculo e da clonagem e das conexões virtuais e da covid-19. O último poema, precisamente intitulado “Covid”, demarca uma condição pandémica da actualidade que não se fica pelo coronavírus: «não é apenas a língua que subjuga / as fontes de incubação / é também a boca vermelha e ensanguentada / do pargo deitado na travessa do almoço / depois de tirar a máscara e espirrar a Índia inteira / e o cheiro do caril que sai pela loja da frente» (p. 354). Um dos aspectos mais interessantes destes textos é a capacidade que têm de fintar preconceitos e desmontar ideias feitas acerca das premissas poéticas que, à partida, julgaríamos estarem na sua origem, pelo que durante a digressão não se espante quem der com um poema sobre a natureza da linguagem (“Nomes”) ao lado de outro em que a linguagem nos aparece reinventada (“Primavera”), uma poema de tipo esotérico (“Apocalipses”) próximo de outro altamente erótico (“Catulo”), um poema socialmente crítico (“Gasset”) antes de outro despudoradamente satírico (“Tipo”). Digamos que em matéria de ambiente ou clima, a diversidade é aqui uma inegável mais-valia.
Luís Carmelo recorre a conceitos típicos da filosofia e das ciências naturais, enxerta referências biográficas nos poemas, não se furta à experimentação variando na forma e nos modos de dizer. Entre as interpelações que mais me tocaram ao ler este livro, destaco duas: o que diferencia cada indivíduo no seio da multidão?; quais os métodos de Deus que explicam o funcionamento da máquina-mundo? Ao afirmar, no início, ser este um livro exigente, não foi no sentido de que seja hermético, que não é, mas antes nesse sentido que outros livros, quer pela extensão formal, quer pela abrangência de temas, demonstram ter. São obras que propõem uma cosmologia, modos de ver o mundo, escapando por completo à condição tantas vezes decorativa dos livros de poesia. Esta “Biografia do Mundo” é actual na linguagem, ousada na forma, pertinente no conteúdo e coloca-nos, por fim, o problema recorrente do género. Onde arrumá-lo? Em que prateleira? É poesia, certamente, mas não deixa de ser também ensaio. Para o efeito, sugere-se a leitura do poema “Jogos”. Começa assim: «Um poema que é um ensaio / não é nunca um ensaio que é um poema» (p. 313). Russell e Wittgenstein explicam.
5 comentários:
"'Seguiu-se um hiato de 32 anos, preenchido com a publicação, em 2015, de “Mymosidades'”.
Antes não tivesse sido quebrado, o hiato. Ter-se-ia poupado tempo e trabalho, neste blogue, pelo menos. A suposta poesia de Luís Carmelo é insuportável, tal como é intragável grande parte da sua prosa.
Pelo menos teve um leitor, ainda que anónimo.
Tendo lido toda a poesia do autor e, pelo menos, grande parte da prosa, só podemos concluir que o Anónimo é masoquista. Tudo bem então. Continue a autoflagelar-se dedicando tempo da sua vida àquilo que não aprecia. E fique grato a todos esses que lhe proporcionam o gozo do intragável.
Já o sr. Fialho é um dedicado serviçal. Obviamente, continuará o seu bom trabalho de feirante.
Serviçal fosse, não me prestaria ao serviço de te mandar à merda, ó Zé.
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