No que diz respeito à problemática de Deus, talvez eu nada mais seja que um caso, singelo mas um caso, equiparável aos descritos na imensa lista de casos de ilustres distanciamentos críticos em relação a Deus inventariada por George Minois (Minois, 2012). Não garanto que assim seja, mas também não vejo como recusar que assim não seja. Seja como for, considero que as várias designações da descrença ou do ateísmo são unicamente nomes e, como nomes que são, só contemplam uma parte do problema do conforto emocional e mental que todos tentamos alcançar. Acho muito curioso, isso sim, que a fé de uns que dizem acreditar convictamente na existência de Deus rivalize com a fé de outros que asseguram não menos convictamente que uma tal entidade não existe. Tornados paradoxalmente gémeos uns dos outros pela ausência de articulação racional das respetivas vias existenciais, ambos os grupos rivalizam mimeticamente entre si por um lugar na narrativa humana intemporal, quando em verdade, em verdade, o que mais importa é o contributo que conjunturalmente podemos dar para a felicidade de todos e de cada um. O resto vem sempre por acréscimo, e com toda a certeza não deve incluir o silenciamento ou, no extremo, o sofrimento e a morte do outro que é ou pensa diferente. No contexto da tradição ocidental, Epicuro ajuda-me a traduzir a posição que melhor me identifica neste particular: «O homem justo é o mais tranquilo de todos os homens. O injusto é o menos» (Epicuro, 1993: 14).
Estas últimas afirmações levam-me a pensar que talvez devesse acrescentar, mais que não fosse porque seria retoricamente funcional, o que alguns já disseram antes de mim: «A minha religião é a tolerância.» Infelizmente, e por mais apelativa que possa ser essa proclamação tão contemporânea na sua correção política, considero que há nela alguma hipocrisia, muita arrogância e ainda mais demagogia. Tal acontece não por causa da obrigatoriedade inequívoca de se ser tolerante em questões de religião para se prosseguir uma via de paz duradoura, mas sim pela sugestão da tolerância como um valor absoluto e indiscutível. Ela não é nem pode ser tal coisa. A tolerância discute-se, sobretudo num tempo em que a razão humana conseguiu finalmente alcançar patamares de fundamentação ética para repudiar crenças e valores religiosos que são invocados para justificar exclusões, perseguições, torturas e mortes.
Ao contrário do escritor que admiro, não me declaro ateu, mas também não me anuncio crente ou até agnóstico. Secularista serei com certeza em virtude da confiança que deposito na ciência e na razão, e se a laicidade for sinónimo de espírito interrogativo, então laico também serei. Sem ser crente nem descrente, e por mais estranha que essa posição possa parecer, favoreço acima de tudo uma atitude cultural assente na dinâmica de ligações e cruzamentos entre contrários, ou um olhar sobre a existência humana repassado de interações e imbricações. Tal acontece acima de tudo porque acho que a vida é demasiado interessante e complexa para reduzirmos a sua compreensão a uma singeleza superficial ou para lhe negarmos o sonho do múltiplo. Trata-se certamente de uma questão de método e, sendo-o, não se quer ver fora da produtividade intelectual do dialogismo por que Edgar Morin, esse virtuoso do método, valoriza o entre como modo de pensamento e a complexidade como princípio.
In A Espiritualidade Clandestina de José Saramago, 2.ª edição aumentada, Fundação José Saramago, Outubro de 2020, pp. 27-29.
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