sábado, 29 de outubro de 2022

POESIA COMPLETA DE JOSÉ SRAMAGO

 


   Quase vinte anos passados sobre a falsa partida que foi o romance “Terra do Pecado” (1947), José Saramago estreou-se na poesia com a publicação de “Os Poemas Possíveis” (1966). O livro saiu numa relevante colecção da Portugália, «Poetas de Hoje», onde estavam publicados, entre outros, Jorge de Sena e Sophia, Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira, Ramos Rosa, Herberto… Daqui se depreende que não era coisa de pouca monta o aparecimento daquele livro, para mais o segundo de alguém que já ultrapassara os 40 anos de vida.
   A inflexão para a poesia, depois de um segundo romance recusado — “Clarabóia” viria a ser recuperado em 2011 —, há-de ter tido razões várias, entre as quais se apresentam como plausíveis a leitura de um livro de José Régio publicado em 1961 (“Filho do Homem”) e uma «intensa experiência amorosa» (expressão de Fernando J. B. Martinho no posfácio a “Poesia Completa”, de José Saramago, recentemente editado pela Assírio & Alvim). Talvez porque o próprio autor não tinha pelos seus poemas o apreço que os romances conquistaram, a poesia de Saramago foi sempre relegada para segundo plano. É verdade que a poesia portuguesa do século XX atingiu um patamar que oferece várias vozes com as quais Saramago dificilmente rivalizaria enquanto poeta, mas seria erro crasso passar indiferente a esta dimensão da vasta obra legada pelo autor.
   Em 1966, a literatura portuguesa já havia conhecido o modernismo e o chamado neo-realismo, o surrealismo e diferentes experimentalismos, não lhe faltando ismos com que se entreter. Foi também a década do movimento Poesia 61, se justo for chamar-lhe movimento. O primeiro livro de poemas de José Saramago é um objecto estranho no meio da corrente. A ligação mais imediatamente evidente será ao modernismo pessoano, nomeadamente em poemas que glosam o jogo de contradições e paradoxos levado ao extremo pelo poeta de “Mensagem”. Tomem-se de exemplo os seguintes versos: «Recorto a minha sombra da parede, / Dou-lhe corda, calor e movimento, / Duas demão de cor e sofrimento, / Quanto baste de fome, o som, a sede.» Isto faz de José Saramago um modernista tardio? Não creio.
   Tratando-se de um livro extenso, “Os Poemas Possíveis” abrem caminho para territórios diferentes e até divergentes. A temática religiosa surge já explorada na secção intitulada “Mitologia”, depois de um conjunto, “Poema a Boca Fechada”, vizinho do melhor que o neo-realismo teve. Refiro-me à capacidade de problematizar o real sem submetê-lo ou reduzi-lo a perspectivas panfletárias. Mas há mais. A par de uma prática do verso rigorosamente vigiado, o gozo da experimentação fonética em poemas como “Premonição”: «Absorto e lasso e morto no regaço, / Ponho a sombra do mastro ou o seu rastro / Ao comprido do corpo e do cansaço.» Vamos reencontrar este gozo da experimentação, plasmado de modo diverso, a meio de “Provavelmente Alegria” (1970), segundo livro de poemas publicado por José Saramago, quando num poema intitulado “O Beijo” o verso se alonga e abre caminho para derivações surrealizantes nos três poemas seguintes. “Protopoema” acaba por ser um anúncio involuntário do que surgiria cinco anos depois com a edição de “O Ano de 1993”, claramente o melhor livro de poemas de José Saramago e, sem dúvida alguma, um extraordinário momento de hibridez genológica.
   Neste volume, composto por trinta poemas em prosa, se assim podemos dizê-lo, os versos desprendem-se por completo de constrangimentos formais, são frases pontuadas por uma respiração interior que narra, em paisagem onírica, distópica, pós-apocalíptica, acontecimentos sem nenhum espaço ou tempo concretos. O título é não só irónico como instaura futuristicamente um porvir que há-de ser passado (seria interessante pensar este livro sem perder de vista os poemas “Science fiction I” e “Science fiction II” de “Os Poemas Possíveis”).
   O derradeiro poemário de Saramago introduz-nos já em algumas componentes posteriormente desenvolvidas nos romances, nomeadamente no que concerne aos temas de uma dinâmica histórica que não prescinde da velha oposição entre o Senhor (que também pode ser Deus) e o Escravo (que também pode ser a humanidade). O discurso é narrativo e parabólico, altamente imagético, ainda que controlado para nos guiar numa determinada direcção. Os quadros são violentos e cruéis, são quadros de barbárie envolvidos numa atmosfera fantástica, posteriormente devolvida à realidade histórica, que de algum modo recupera visões apocalípticas prenunciando impressionantemente os medos e as obsessões de uma actualidade obcecada com a ameaça do fim: «Distante julgaríamos o ano de 1993 e contudo é tempo dele ainda.» Faz todo o sentido relê-lo agora nestes tempos de emergência climática.

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