quarta-feira, 16 de novembro de 2022

DEZASSEIS

 
   16. No ano em que comemorei 15 outonos a União Soviética retirou-se do Afeganistão, foi detectado o nascimento de uma estrela pulsante entre os restos da supernova, a cabeça de Salman Rushdie ficou a prémio, a World Wide Web foi inventada no CERN, deu-se a tragédia de Hillsborough, polícias secos mediram forças com polícias molhados na Praça do Comércio, houve manifestações na Praça Tiananmen, morreu o Aiatola Khomeini, caiu o Muro de Berlim, anunciou-se o fim da Guerra Fria. Todos estes acontecimentos, por certo determinantes no curso da História, representaram pouco no curso dos meus dias. O mesmo não posso dizer acerca dos olhos de Aukje, a holandesa por quem tombei de amores estivais e a quem respondi prontamente aos apelos chegados de Ysselsteyn no dia 21 de Outubro de 1989: «I hope you’ll rewrite again, I am already waitting!» Era um tempo em que esperávamos por correspondência com as palavras mais simples, as que hoje se enviam por SMS ou e-mail. E nas folhas lisas, de linhas, quadriculadas, marcadas com as impressões digitais dos lábios juvenis, desenhávamos corações com versos acriançados em caligrafia trémula. «God give us Jimi Hendrix back», escreveu o irmão de Aukje numa outra carta. Mas essa data já do ano seguinte. No ano em que comemorei 15 outonos, o curso da minha História mudou por outras razões. Foi o ano em que me ofereceram “O Papalagui”, lido de boca aberta interrogando-me descontinuadamente sobre que merda de mundo era o meu, o dos muros e das webs e dos aiatolas e das guerras frias. Ainda hoje não sei.

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