Um dos maiores equívocos da
poesia portuguesa, provavelmente instaurado logo por Sá de Miranda, é o elogio
da simplicidade campestre por oposição à vida dissoluta nas cidades. O
desconcerto do mundo no século XVI instaurou a divisão entre dois mundos, o da
aldeia e o da cultura, como se entre ambos existisse uma fronteira que separava
o pragmatismo de uns da inutilidade de outros. Na écloga “Montano” estava em
causa uma crítica da ascensão da burguesia com o incremento do capitalismo
mercantil e financeiro, o campo não é tanto visto como refúgio mas como lugar
de uma pureza que a cidade conspurcava com seus exemplos de tirania, adulações,
hipocrisias: «Estes montes são milhores / que as praças das confusões.» Esta noção
de pureza levou a um culto do campo enquanto paraíso perdido, primado de vários
exemplos de estafado bucolismo idílico de que ainda não nos desfizemos por completo.
Foi
preciso esperar pelo século XX para que o campo aparecesse como palco de várias
formas de injustiça social, inferno de precariedades e iniquidades diversas.
Depois o campo desapareceu da poesia portuguesa, os poetas concentraram-se na
vida urbana perdendo de vista uma paisagem rural em profunda transformação. Há excepções,
sejam elas a de uma perspectiva nostálgica do que sobra em matéria de vida
simples, seja a de uma desmitologização dessa ideia ingénua de bem-estar campesino
que apenas concorda com as perversões do turismo rural em terras ao abandono. E
há a poesia de João Moita (n. 1984), voz singular cuja discrição lhe oferece
garantias de conservação fora de batalhas emparvoadas que voltam uns contra
outros para estarem todos a falar dos mesmos.
Não sou o primeiro a referir-me a
«Que Túmulo em Que talhão» (Guerra e Paz, Abril de 2022) como um dos melhores
livros de poesia portuguesa contemporânea publicados entre nós no ano que ora
finda. Tenha-se em conta o entusiasmo de Miguel Martins na revista “Colóquio/Letras”
(Setembro de 2022). «Que Túmulo em Que talhão» abre com uma epígrafe anterior
ao índice, a palavra Alpiarça, assim mesmo isolada e em itálico. A referência inicial à
terra natal contrasta com um título que remete, todo ele, para a problemática
da morte. Entendamos a vila ribatejana como palco privilegiado de uma poesia
que nada tem de encomiástico, antes pelo contrário. O poema que antecede as
duas partes do livro, à laia de arte poética, elucida-nos quanto a um
entendimento da escrita como gesto violento. É precisamente essa violência, contra
os tais bucolismos idílicos acima referidos, que encontraremos nos poemas da primeira
parte, intitulada A Vila, e da segunda, intitulada Os Campos. Uma vila
amadornada (ver p. 23) onde os campos agonizam (ver p. 52).
Estes poemas
subvertem completamente os pressupostos a partir dos quais se enformou a
paisagem rural ao longo de séculos de literatura, mostrando-nos em imagens ora
abjectas, ora cruéis, de uma verosimilhança impressionante, a morte que
fertiliza os campos. O problema é ontológico, mas não está inteiramente ligado
aos ritmos de regeneração das terras. Se assim fosse, não seríamos brindados
com ratos a mijarem pelos cantos, uma ninhada de gatos afogados a boiarem num
alguidar reluzente, motas obsoletas e igrejas decrépitas, «Uma paz que sufoca.»
(p. 25), vísceras de frangos degolados, uma cadela a lamber duas hemorróidas,
os cheiros a ranço, cadaverina e metano, etc. Em poemas concebidos quase como
inventários, a paisagem é descrita com minúcia e atenção a pormenores sórdidos. O bestiário naturalista exposto, a espaços interrompido por breves
gestos humanos, é o da «podridão da terra / pululante / de vermes» (p. 18).
«Dejectos a toda a roda» (p. 78), putrefacção, excrementos.
Quando me refiro ao
problema ontológico é para enfatizar aquela que considero ser a percepção mais
forte oferecida, qual dádiva das terras, por estes versos, a de que a morte e a
vida se interligam, não há corpo sem cadáver, dos mortos se alimentam os vivos,
algo que nos remete para rituais ancestrais e todo um palavreado místico
sintetizável em dois versos concretíssimos: «Sugar os gomos, / cuspir as
sementes» (p. 36).
Uma das características que mais me impressionou neste livro
foi também ter constatado quão rara é a aparição da primeira pessoa do singular nestes
poemas, como se neles houvesse um apagamento do sujeito que favorece e até
reforça uma posição contemplativa. Quando o “eu” surge é para nos dar conta do
essencial: «Como este céu / será a minha vida — / larga, / erma, / devoluta,
/ riscada / por debandadas» (p. 64). Ou: «Também eu conheço / o vómito criador,
/ ácida transparência / que me sobe / à garganta, / refluxo / em que sufoco» (p
. 79). Depois de “Uma Pedra Sobre a Boca” (Guerra e Paz, Maio de 2019), este
livro vem confirmar João Moita como um dos poetas mais desafiantes da nova
geração. Não precisa de parangonas nem de batalhas que o coloquem nas bocas do
mundo, precisa apenas de poemas, bons poemas como este:
Um meio-dia translúcido
e sem peso
na quietude ondulada
da lezíria.
Um silêncio povoado,
um frenesim imperceptível,
a vibrante azáfama
da vida
na imobilidade da hora.
Também eu
participo do silêncio,
deixo alastrar o veneno.
e sem peso
na quietude ondulada
da lezíria.
um frenesim imperceptível,
a vibrante azáfama
da vida
na imobilidade da hora.
participo do silêncio,
deixo alastrar o veneno.
1 comentário:
Interessante! Obrigado.
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