quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

QUE TÚMULO EM QUE TALHÃO

 


   Um dos maiores equívocos da poesia portuguesa, provavelmente instaurado logo por Sá de Miranda, é o elogio da simplicidade campestre por oposição à vida dissoluta nas cidades. O desconcerto do mundo no século XVI instaurou a divisão entre dois mundos, o da aldeia e o da cultura, como se entre ambos existisse uma fronteira que separava o pragmatismo de uns da inutilidade de outros. Na écloga “Montano” estava em causa uma crítica da ascensão da burguesia com o incremento do capitalismo mercantil e financeiro, o campo não é tanto visto como refúgio mas como lugar de uma pureza que a cidade conspurcava com seus exemplos de tirania, adulações, hipocrisias: «Estes montes são milhores / que as praças das confusões.» Esta noção de pureza levou a um culto do campo enquanto paraíso perdido, primado de vários exemplos de estafado bucolismo idílico de que ainda não nos desfizemos por completo.
   Foi preciso esperar pelo século XX para que o campo aparecesse como palco de várias formas de injustiça social, inferno de precariedades e iniquidades diversas. Depois o campo desapareceu da poesia portuguesa, os poetas concentraram-se na vida urbana perdendo de vista uma paisagem rural em profunda transformação. Há excepções, sejam elas a de uma perspectiva nostálgica do que sobra em matéria de vida simples, seja a de uma desmitologização dessa ideia ingénua de bem-estar campesino que apenas concorda com as perversões do turismo rural em terras ao abandono. E há a poesia de João Moita (n. 1984), voz singular cuja discrição lhe oferece garantias de conservação fora de batalhas emparvoadas que voltam uns contra outros para estarem todos a falar dos mesmos.
   Não sou o primeiro a referir-me a «Que Túmulo em Que talhão» (Guerra e Paz, Abril de 2022) como um dos melhores livros de poesia portuguesa contemporânea publicados entre nós no ano que ora finda. Tenha-se em conta o entusiasmo de Miguel Martins na revista “Colóquio/Letras” (Setembro de 2022). «Que Túmulo em Que talhão» abre com uma epígrafe anterior ao índice, a palavra Alpiarça, assim mesmo isolada e em itálico. A referência inicial à terra natal contrasta com um título que remete, todo ele, para a problemática da morte. Entendamos a vila ribatejana como palco privilegiado de uma poesia que nada tem de encomiástico, antes pelo contrário. O poema que antecede as duas partes do livro, à laia de arte poética, elucida-nos quanto a um entendimento da escrita como gesto violento. É precisamente essa violência, contra os tais bucolismos idílicos acima referidos, que encontraremos nos poemas da primeira parte, intitulada A Vila, e da segunda, intitulada Os Campos. Uma vila amadornada (ver p. 23) onde os campos agonizam (ver p. 52).
   Estes poemas subvertem completamente os pressupostos a partir dos quais se enformou a paisagem rural ao longo de séculos de literatura, mostrando-nos em imagens ora abjectas, ora cruéis, de uma verosimilhança impressionante, a morte que fertiliza os campos. O problema é ontológico, mas não está inteiramente ligado aos ritmos de regeneração das terras. Se assim fosse, não seríamos brindados com ratos a mijarem pelos cantos, uma ninhada de gatos afogados a boiarem num alguidar reluzente, motas obsoletas e igrejas decrépitas, «Uma paz que sufoca.» (p. 25), vísceras de frangos degolados, uma cadela a lamber duas hemorróidas, os cheiros a ranço, cadaverina e metano, etc. Em poemas concebidos quase como inventários, a paisagem é descrita com minúcia e atenção a pormenores sórdidos. O bestiário naturalista exposto, a espaços interrompido por breves gestos humanos, é o da «podridão da terra / pululante / de vermes» (p. 18). «Dejectos a toda a roda» (p. 78), putrefacção, excrementos.
   Quando me refiro ao problema ontológico é para enfatizar aquela que considero ser a percepção mais forte oferecida, qual dádiva das terras, por estes versos, a de que a morte e a vida se interligam, não há corpo sem cadáver, dos mortos se alimentam os vivos, algo que nos remete para rituais ancestrais e todo um palavreado místico sintetizável em dois versos concretíssimos: «Sugar os gomos, / cuspir as sementes» (p. 36).
   Uma das características que mais me impressionou neste livro foi também ter constatado quão rara é a aparição da primeira pessoa do singular nestes poemas, como se neles houvesse um apagamento do sujeito que favorece e até reforça uma posição contemplativa. Quando o “eu” surge é para nos dar conta do essencial: «Como este céu / será a minha vida / larga, / erma, / devoluta, / riscada / por debandadas» (p. 64). Ou: «Também eu conheço / o vómito criador, / ácida transparência / que me sobe / à garganta, / refluxo / em que sufoco» (p . 79). Depois de “Uma Pedra Sobre a Boca” (Guerra e Paz, Maio de 2019), este livro vem confirmar João Moita como um dos poetas mais desafiantes da nova geração. Não precisa de parangonas nem de batalhas que o coloquem nas bocas do mundo, precisa apenas de poemas, bons poemas como este:
 
Um meio-dia translúcido
e sem peso
na quietude ondulada
da lezíria.
 
Um silêncio povoado,
um frenesim imperceptível,
a vibrante azáfama
da vida
na imobilidade da hora.
 
Também eu
participo do silêncio,
deixo alastrar o veneno.


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