terça-feira, 24 de janeiro de 2023

VERTIGEM

 

Ultrapassada a vertigem de demissões no governo, a estética trans encontrou uma boca de cena para desembocarmos agora num palco de 4,2 milhões. Nas redes sociais e na imprensa em geral, a sociedade convertida em ponto vai relembrando o texto aos actores, não perdendo pitada do guião. Não há quem invada redacções acusando os intervenientes de jornalismo fake nem quem se manifeste nas arcadas da AR exigindo aos deputados eleitos que abdiquem dos seus papéis, mas os stôres lá vão lutando por direitos que lhes assistem e as 660 mil pessoas em pobreza energética severa aquecem as mãos com o bafo a bagaceira. Eu, no meio disto tudo, confesso as minhas preocupações domésticas com timidez e até alguma vergonha:

1. Porque é que o herói da Odisseia é Odisseu, o da Eneida é Eneias e o da Ilíada não é Ilídio?

2. A cueca fio dental serve de cueca ou é mero adereço?

3. Não me revejo nessa coisa de pessoa cis, cheira-me a stasi, cia, sis. Posso ser só um gajo porreiro?

1 comentário:

Miguel disse...

É difícil levar isto a sério. Uma certa nostalgia pelos bobos da corte é um traço recorrente na classe burguesa. Há quase cem anos tomou forma, nos meios de comunicação de massas em Portugal, com os filmes do Vasco Santana e do António Silva. Hoje reaparece com fio dental e uma linguagem desbragada, que nem sequer o calão português conhece. Um ponto em comum é a estupidez. Outro é o kitsch: o mundo sem mácula e o armar ao pingarelho. Uma articulista no Público aparece a invocar o Thomas Nagel "What is it like to be a bat?" a propósito da performance do fio dental ... Ficamos assim a saber, graças à "arte da colagem e da citação", que os problemas que nos dilaceram a alma e os corpos são (como sempre foram, claro) os sentimentos assolapados. Mas, nos entretantos, a burguesia tornou-se "transgressiva", e enveredou pela problematização e semiótica das pilinhas e das pachachas. E por todas as combinações lineares que a partir daí se podem imaginar. Chegaram com cem anos de atraso. Sempre tive dificuldade em perceber como é que raio fulanos na linha do Bill Viola ou da Joana Vasconcelos tinham saída ... Aí está.

É quase eterno, e continua impagável, este charme discreto da burguesia.

(desculpa lá este lençol de disparates, mas é que senão até os gajos porreiros hão-de começar a levar este circo a sério)