“Estátuas na Praça” (Apuro Edições, Setembro de 2022) é o quinto livro
de poesia de João Habitualmente, pseudónimo literário do psicólogo Luís
Fernandes (Porto, 1961), autor de um ensaio, “As Lentas Lições do Corpo”
(Contraponto, 2021), que nos desafia a pensar relações possíveis entre a
linguagem poética e domínios geralmente reservados ao discurso científico. Lá
iremos. Por ora, são estas “estátuas” o centro da nossa atenção.
Não deixemos passar despercebida a apresentação constante na primeira badana do livro. Diz assim, acerca do autor em causa: «Um poeta lento em tempos de fast food e de fast thinking; um poeta que ri em tempos de distopias; um poeta que sofre em tempos de frivolidade à solta nas redes. A poesia não salva — não salva nem vende. Mas é preciso continuar a fazê-la, é preciso continuar a gritá-la.» Nestas palavras simples vislumbramos um manifesto a favor da poesia contra a voragem característica das sociedades consumistas e aparatosas (as do espectáculo). O poético enquanto oposição ao frívolo, ao efémero, ao descartável, pela defesa de uma lentidão que é a da acção pensada, ao contrário da acção imediata e irreflectida promovida por ritmos existenciais hiperacelerados que as redes sociais vieram incrementar.
Há uma tomada de posição nesta narrativa que poderá parecer paradoxal a alguns leitores de João Habitualmente, sobretudo àqueles que desprevenidamente se deixam encantar pela aparente superficialidade de uma linguagem atreita ao riso, ao humor, à ironia, à sátira, ao irrisório, dimensões facilmente confundíveis com ligeireza e com o óbvio. Acontece que esta é desde o início uma poesia de subtilezas e de paradoxos, como bem detectou António Guerreiro ao escrever sobre ela aquando da publicação de “Os Animais Antigos”: «é urbana, ainda que privilegiando os motivos rurais» (Expresso, 22 de Abril de 2006). “Saudável bucolismo”, o título da recensão de Guerreiro, era, porém, lacónico e induzia em erro por associar esta poesia ao bucolismo. Dos três conjuntos que compõem “Estátuas na Praça”, destacaria o verso inicial do poema “A Minha Rua de Cartão” como desmentido desse “saudável bucolismo”: «Gosto da cidade, é o sítio onde toda a gente passa. (p. 61).
Esta é antes uma poesia que se presta a equívocos, lúdica na linha de um O’Neill, até pelas contradições a que não foge e explora convenientemente. Comparem-se os poemas “Mosaico”, de “Os Animais Antigos”, e “Palavras Próprias para Poemas”, do livro mais recente. No primeiro, diz João Habitualmente: «Basta de palavras como pássaro, orvalho ou madrugada / basta de cartas de amor.» No segundo, por outro lado, afirma: «Só gosto de certas palavras / Por exemplo ave / no poema // Fora disso prefiro outras / Por exemplo pássaro.» O que está em causa, antes de mais, é a certeza e o axioma enquanto material poético. Para ser autêntica, a poesia tem inevitavelmente de entrar em contradição consigo mesma. Não se trata tanto de um postulado como de uma percepção que advém do modo como entendemos o diálogo entre razão e emoção que está na fundação do discurso poético.
Três conjuntos, separados por dois poemas soltos, constituem então o presente volume. No primeiro, intitulado “Circulação da Seiva”, deparamos com versos de um erotismo multicelular, ou seja, assaz diversificado na origem e no propósito. É o corpo enquanto tópico, o corpo desejante e sexuado, «infindo ir e vir / entre a filosofia e a carne» (p. 11), a matéria moldável dos versos. “Sal no Sol”, o segundo conjunto, colige maioritariamente poemas em prosa ou próximos disso. Micronarrativas, se preferirem. O verso alarga-se à prosa dos dias correntes, quotidianos, sem se desviar por um momento da dimensão lúdica das palavras. Há quatro poemas em verso — “Meteorologia”, “Anatomia”, “Biologia”, “Matemática” — que são um belo exemplo desse lugar de confluência entre o poético e o científico na obra de João Habitualmente. Por fim, no conjunto denominado “Faróis na Duna” somos encaminhados para o campo da arte poética. A palavra farol envia-nos para o poema de Baudelaire dedicado aos guias da sua arte, mas nada está explícito no livro sobre o facto de assim ser. De resto, se há algo que me agrada nesta poesia é o seu comedimento referencial. Tudo nela se subentende, nada se explícita, ficando em aberto o campo de possibilidades que permite ao leitor imaginar para lá do que está escrito. É a vantagem da distância:
DISTÂNCIA
Cansei-me das pequenas glórias.
A minha glória é o sol
a haste em riste
duma flor
Cansei-me de me dizerem quem sou.
Sou este
no chão descalço
a nada mais aspiro
do que à distância
lugares longe
num para lá tão afastado
que não haja
o que a silhueta fátua e o
aplauso
me andaram a roubar
João Habitualmente, in “Estátuas na
Praça”, Apuro Edições, Setembro de 2022, p. 56.
Não deixemos passar despercebida a apresentação constante na primeira badana do livro. Diz assim, acerca do autor em causa: «Um poeta lento em tempos de fast food e de fast thinking; um poeta que ri em tempos de distopias; um poeta que sofre em tempos de frivolidade à solta nas redes. A poesia não salva — não salva nem vende. Mas é preciso continuar a fazê-la, é preciso continuar a gritá-la.» Nestas palavras simples vislumbramos um manifesto a favor da poesia contra a voragem característica das sociedades consumistas e aparatosas (as do espectáculo). O poético enquanto oposição ao frívolo, ao efémero, ao descartável, pela defesa de uma lentidão que é a da acção pensada, ao contrário da acção imediata e irreflectida promovida por ritmos existenciais hiperacelerados que as redes sociais vieram incrementar.
Há uma tomada de posição nesta narrativa que poderá parecer paradoxal a alguns leitores de João Habitualmente, sobretudo àqueles que desprevenidamente se deixam encantar pela aparente superficialidade de uma linguagem atreita ao riso, ao humor, à ironia, à sátira, ao irrisório, dimensões facilmente confundíveis com ligeireza e com o óbvio. Acontece que esta é desde o início uma poesia de subtilezas e de paradoxos, como bem detectou António Guerreiro ao escrever sobre ela aquando da publicação de “Os Animais Antigos”: «é urbana, ainda que privilegiando os motivos rurais» (Expresso, 22 de Abril de 2006). “Saudável bucolismo”, o título da recensão de Guerreiro, era, porém, lacónico e induzia em erro por associar esta poesia ao bucolismo. Dos três conjuntos que compõem “Estátuas na Praça”, destacaria o verso inicial do poema “A Minha Rua de Cartão” como desmentido desse “saudável bucolismo”: «Gosto da cidade, é o sítio onde toda a gente passa. (p. 61).
Esta é antes uma poesia que se presta a equívocos, lúdica na linha de um O’Neill, até pelas contradições a que não foge e explora convenientemente. Comparem-se os poemas “Mosaico”, de “Os Animais Antigos”, e “Palavras Próprias para Poemas”, do livro mais recente. No primeiro, diz João Habitualmente: «Basta de palavras como pássaro, orvalho ou madrugada / basta de cartas de amor.» No segundo, por outro lado, afirma: «Só gosto de certas palavras / Por exemplo ave / no poema // Fora disso prefiro outras / Por exemplo pássaro.» O que está em causa, antes de mais, é a certeza e o axioma enquanto material poético. Para ser autêntica, a poesia tem inevitavelmente de entrar em contradição consigo mesma. Não se trata tanto de um postulado como de uma percepção que advém do modo como entendemos o diálogo entre razão e emoção que está na fundação do discurso poético.
Três conjuntos, separados por dois poemas soltos, constituem então o presente volume. No primeiro, intitulado “Circulação da Seiva”, deparamos com versos de um erotismo multicelular, ou seja, assaz diversificado na origem e no propósito. É o corpo enquanto tópico, o corpo desejante e sexuado, «infindo ir e vir / entre a filosofia e a carne» (p. 11), a matéria moldável dos versos. “Sal no Sol”, o segundo conjunto, colige maioritariamente poemas em prosa ou próximos disso. Micronarrativas, se preferirem. O verso alarga-se à prosa dos dias correntes, quotidianos, sem se desviar por um momento da dimensão lúdica das palavras. Há quatro poemas em verso — “Meteorologia”, “Anatomia”, “Biologia”, “Matemática” — que são um belo exemplo desse lugar de confluência entre o poético e o científico na obra de João Habitualmente. Por fim, no conjunto denominado “Faróis na Duna” somos encaminhados para o campo da arte poética. A palavra farol envia-nos para o poema de Baudelaire dedicado aos guias da sua arte, mas nada está explícito no livro sobre o facto de assim ser. De resto, se há algo que me agrada nesta poesia é o seu comedimento referencial. Tudo nela se subentende, nada se explícita, ficando em aberto o campo de possibilidades que permite ao leitor imaginar para lá do que está escrito. É a vantagem da distância:
A minha glória é o sol
a haste em riste
Sou este
no chão descalço
a nada mais aspiro
do que à distância
num para lá tão afastado
que não haja
o que a silhueta fátua e o
aplauso
me andaram a roubar
2 comentários:
hum
Sem dúvida, a conhecer.
Obrigada.
~CC~
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