domingo, 12 de fevereiro de 2023

ZEC (1956)

 


Escrevi colos onde devia ter escrito solos. Acto falhado. Estava a pensar na última vez que amei e me senti amado. Tive medo. Fugi. Não ostensivamente, mas como fogem os cobardes. Fui-me distanciando, afastando, imaginando como seria se tivesse sido diferente. Sempre temi o amor, julgo, agora que penso nisso. Nunca o entendi sem paixão e é esse predomínio da paixão sobre a racionalidade que me atemoriza e prende e tortura e massacra. Se eu fosse Descartes, começaria por aqui: «Penso. Logo, sofro.» É este o começo de tudo. Gostava de conseguir dizer adeus à razão antes de ser ela a abandonar-me, deixando-me a sós com a loucura das suposições. Houve uma altura em que não chorava. Ou chorava para dentro, em silêncio, como quem deglute a própria dor. Por vezes comovo-me, mas é raro. Cada vez mais raro. E a pessoas cansam-me tanto que prefiro imaginá-las irracionais quando as tenho por perto. A minha casa é o labirinto onde me encerrei voluntariamente. Sei a saída, conheço os recantos, posso saltar pela varanda com asas de cera. Por enquanto não, ainda não chegou a minha hora. O que foi feito do amor que então sentia? Devo tê-lo arrumado como a uma peça de roupa velha, bem dobrado, no fundo de uma gaveta com bolas de naftalina. Por vezes sacudo-o para ver se as traças o mantêm intacto. Depois volto a dobrá-lo e a arrumá-lo e nada sinto. Transformei o amor numa dessas tarefas quotidianas que facilmente negligenciamos. Sou muito mais cuidadoso com as horas de levar a cadela à rua do que com o amor.

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