Aparentemente, tenho pelos meus contemporâneos um apreço que os próprios parecem não nutrir uns pelos outros. Gosto dos meus contemporâneos, é com eles que posso desfrutar de banquetes regados pela verdade vinícola das regiões não demarcadas. E alimentar o espírito com o pão amassado pelas mãos do diabo que os carregue. Aos mortos vou buscar lições sobre erros e fracassos, nos vivos, naqueles entre os quais me encontro, colho ossos com que compor cadáveres. É com os meus contemporâneos que adormeço e desperto e me mantenho vigilante ao ritmo da tarola de T. S. Monk, meu ilustre contemporâneo, caso não saibam. Com os do meu tempo posso eu bem, sejam anónimos como nomes por detrás dos quais se ocultam rostos ou detectáveis a olho nu. O que neles me agrada é não entenderem, pelo menos em regra, quão pouco inovadores são, sobretudo quando se julgam o supra-sumo de uma inteligência que, vá lá, no século XVIII já havia sido mais do que embarcada em sarcófago egípcio a caminho da eternidade. Para a maioria de nós, eternidade significa esquecimento. Nisso os meus contemporâneos são azes de espadas, tão focados que andam na contemporaneidade desmemoriam-se oferecendo de mão beijada às tecnologias o poderem vir a ser lembrados como meteoritos desfazendo-se em poeira ao penetrarem a atmosfera terrestre. Meto esperança na inteligência artificial, confesso. Parece-me bem mais natural do que a dos meus contemporâneos. Se o mundo humanamente governado deu no que deu, pode ser que com a cabeça algoritmada venhamos finalmente a conquistar aquele sentido humanista que sempre nos escapou. Deixaríamos de ser bestas adestradas pelo pensamento para passarmos a ser criaturas instintivamente programadas. Mais próximos da animalidade declinada, finalmente humanos seríamos. No futuro, a pergunta sobre a existência de alma nos animais deixará de ter sentido. Questionaremos antes a existência de alma nos seres humanos. Portanto, há que depositar esperança nos meus contemporâneos, apostar as fichas todas nesses seres bípedes sem penas que palreiam sem fim. Quando finalmente e derradeiramente se tiverem absolutamente negado a si mesmos, um mundo novo brotará com horizontes de esperança infindos. Deixarão de se desprezar uns aos outros para simplesmente se ignorarem, ignorando-se a si mesmos. Nada mau.
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