sexta-feira, 19 de maio de 2023

UM POEMA DE ARMANDO SILVA CARVALHO


OS LOUCOS

A profissão de deus, o discurso do mundo, os pilares do universo,
eis um princípio magnânimo para abrir um poema.
A sua vastidão sem nome foge aos nomes,
solta na cabeça uma animalidade, lirismos, novas criaturas.

Quer passear com deus, a pobre alminha gráfica,
e recruta os anjos nos olhos da malícia, diz-se que deus é pobre
que não sabe sorrir, que se dá com crianças, putas e publicanos,
que não tem afinal profissão definida.

Que ladainha triste e sem filosofia,
sem as cavernas do grego, as mónadas do alemão,
sem o deus sive natura do judeu herege,
sem a teimosia daquele lá porque pensa existe e deus é perfeição
e basta.

Olhai: apenas um passeio de trôpegas palavras,
por vezes inquietas, infantis, e logo velhas à nascença,
consoante os cantos em que se vão esconder.
Perdidas dos fenómenos e nómenos, tacteiam-se entre si e logo gritam
que tocaram deus.

Há uma cegueira diversa no olhar dos loucos
que os leva a puxar pelo mundo
em segurança.
Como se o mundo fosse uma simples pesca, uma companha,
daqui saltam os peixes corredios, a prata da casa,
tudo o que foi cardume e percorreu o mar,
ciente e cauteloso,
dali crescem moluscos, grossos anéis de coragem,
sem dúvidas, firmes, e poderosos
na morte.

Rodam o pescoço à volta do universo, os loucos,
e tudo é matemática, biliões de anos-luz, a imensidão do silêncio
à entrada de deus.
É sua profissão purificar a saliva,
dar maior brilho às almas, criar as labaredas que não ardem,
deixar a casa limpa e ordenar aos anjos
que não adormeçam.

Armando Silva Carvalho, in A Sombra do Mar, Assírio & Alvim, Julho de 2015, pp. 24-25.

3 comentários:

Diogo Almeida disse...

É um bom livro.

José Luiz Tavares disse...

Notável livro, que me foi frutuosa companhia durante a pandemia. Num dos anos em que estive no júri do Prémio Camões (2017), ao consensualizarmos que o prémio nesse ano seria para um poeta português, ele esteve no rol dos meus preferidos, com o Alberto Pimenta, o Fernando Echevarría e o António Franco Alexandre.
Há duas semanas falei bastante dele numa escola secundária da Lourinhã.

José Luiz Tavares

hmbf disse...

Abraço, José. Haja quem fale dos melhores.