sábado, 10 de junho de 2023

ENCHER A BARRIGA DE CAMÕES

 


Ontem adormeci a ouver o Expresso da Meia-Noite. A ausência do Ferrão pareceu-me vantajosa, pelo que resolvi dar uma hipótese ao debate. Discutia-se o Estado da Nação, com base em sondagem do ISCTE que o Costa irmão classificou como deprimente. Referia-se aos resultados, sem dar conta, obviamente, de quanto tem contribuído para a depressão com o jornalixo de lana-caprina numa casa que promoveu a totem o destrambelhado Milhazes. Pedro Magalhães, o homem das sondagens e das estatísticas, lá ia esclarecendo aquilo que anda a esclarecer há décadas sem qualquer efeito: duas criaturas que respondam da mesma forma a uma pergunta fechada podem fazê-lo por razões muito diversas, cuidado com as generalizações. Nada disso é para ter em conta, importam os números, esses maravilhosos números sobre os quais a eloquência de cada qual logra as teses mais estrambólicas e sensacionalistas e lucrativas do ponto de vista das audiências. Álvaro Beleza, um dos comentadores de serviço, citava Thatcher e Churchill e dizia outras coisas sem interesse. Foi preciso uma especialista em ciência política, cujo nome não recordo, lamento, apresentada como trabalhando entre Espanha e os EUA, para tornar claro algo que só em cabeças turvas não desabrocha com viço: os portugueses, essa massa que, na verdade, não existe em si mesma, estão mais com o que lhes é próximo do que com quem lhes é distante. Ou seja, preferem o presidente da junta que lhes desenrasca as fossas entupidas aos governantes que os massacram com obras de saneamento básico. Isto, trocado por miúdos, significa que a maioria dos tugas não vê senão para lá do umbigo e, com esforço, até à ponta do nariz (ter em conta nas variantes geométricas o volume da pança e a extensão da penca). Queremos é o quintalinho arranjado, bailaricos de Verão e bichas nos restaurantes para a sardinha assada. Somos um povo que desconfia do que não percebe, do que não compreende, do que não alcança, e como alcançamos pouco, por via de uma cultura deficiente e de uma educação medíocre, tendemos a valorizar mais a feira das tasquinhas do que a lírica de Camões. Assuntos complexos não são divertidos. Logo, toca a resolvê-los rápido e eficazmente com atoardas e lugares-comuns. A lavoura do desenrascanço é a erudição do povo geral, muito dado a recados e a jeitinhos, à chico-espertice e a uma certa astúcia servil que compromete meio mundo com deves e haveres e deixa o outro meio consignado à negligência das instituições. Adormeci a pensar que isto de nascer português tem uma enorme vantagem, é não se nascer haitiano, mas também tem uma desvantagem lixada, que é nascer-se português. Agora vou ali pedir um autógrafo à Maria Leal barbuda dos estudos russófobos e volto já.

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