Não me perderei por vós
se insistirdes em ver-me assim.
Deus (que posso ser eu)
não ama quem não se cumpre
e só se importa com a casa
mais as crias que pariu.
Deus (que também sou eu)
ama-me imperfeita e viva da vida
que o sexo dos meus pais me deu
— com amantes, lágrimas, doenças em abundância —,
a mim, a quem ninguém poderia chamar
«puta»
porque sou filha do 25 de Abril.
Não me confinareis a nada,
que não vos engane a moldura com a imagem
da mãe seráfica com a criança ao colo
— o sexo é a minha linguagem.
Se apenas me amardes a alma,
outros amarão a carne, a musculatura,
a cara desfigurada, a convulsão e as secreções
— essas sim, sagradas.
Entretanto confesso:
o que melhor faço é cuidar dos meus amores,
mimá-los, acarinha-los, ouvi-los,
preocupar-me com eles até à zanga.
Sou mãe e estou a ficar velha.
Não espereis de mim coisas novas,
diferentes perspectivas,
mais e mais trabalho,
detesto zingarelhos, informática,
a absurda panóplia tecnológica
com que atafulhamos a galáxia,
canga que não sara feridas
— as minhas luzem em supernova,
anunciam-me a morte há vidas,
só posso assumi-las,
deixá-las ao ar para não necrosarem.
Mas tudo isto é tão cansativo.
Por isso calo-me, dispo-me,
ponho-me de quatro
— a coluna expande-se-me numa cauda.
Réptil jovem sem mal nem culpa,
adentro-me na videira.
Nestes bastidores
nem dentro nem fora da casa,
estou protegida.
Sou uma osga ora frenética ora estática,
alimento-me aleatoriamente,
a minha lista de afazeres é reduzidíssima.
Observo o interior desde a rama
— se não entro, não me presto à sapatada.
De entediante esta vida de semi-deusa
em tudo semelhante à de uma morta-viva,
ao menor roçagar de folhas, pergunto-me
se haverá outro réptil que acasale comigo.
Catarina Santiago Costa, in “Oxigénio”, colecção elementário,
volume n.º 10, Flan de Tal, Abril de 2022, pp. 25-27.
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