quinta-feira, 2 de maio de 2024

UMA ELEGIA DE LUÍS DE CAMÕES

 
 
O poeta Simónides, falando
Co Capitão Temístocles, um dia,
Em cousas de ciência praticando,
 
Ũa arte singular lhe prometia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;
 
Onde tão sotis regras lhe mostrasse
Que nunca lhe passassem da memória
Em nenhum tempo as cousas que passasse.
 
Bem merecia, certo, fama e glória
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta qualquer antiga história.
 
Mas o Capitão claro, cujo intento
Bem diferente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,
 
 — Ó ilustre Simónides! — dezia —
Pois tanto em teu engenho te confias,
Que mostras à memória nova via,
 
Se me desses ῦa arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh! quanto milhor obra me farias!
 
Se este excelente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente,
Em longas esperanças degradado,
 
Oh! como bradaria justamente:
— Simónides, inventa novas artes:
Não midas o passado co presente!
 
Que, se é forçado andar por várias partes
Buscando à vida algum descanso honesto,
Que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
 
E se o duro trabalho é manifesto
Que, por grave que seja, há-de passar-se
Com animoso esprito e ledo gesto;
 
De que serve às pessoas o lembrar-se
Do que se passou já, pois tudo passa,
Senão de entristecer-se e magoar-se?
 
Se em outro corpo ῦa alma se trespassa,
Não como quis Pitágoras, na morte,
Mas como quer Amor, na vida escassa;
 
E se este Amor no mundo está de sorte
Que na virtude só dum lindo objecto
Tem um corpo sem alma, vivo e forte;
 
Onde este objeito falta, que é defecto
Tamanho pera a vida que já nela
Me está chamando à pena a dura Alecto;
 
Porque me não criara a minha estrela
Selvático no mundo, e habitante
Na dura Cítia, e no mais duro dela?
 
Ou no Cáucaso horrendo? Fraco infante,
Criado ao peito dῦa tigre hircana,
Homem fora formado de diamante,
 
Por que a cerviz ferina e inumana
Não sometera ao jugo e dura lei
Daquele que dá vida quando engana.
 
Ou, em pago das águas que estilei,
As que passei do mar foram do Lete,
Pera que me esquecera o que passei.
 
Porque o bem que a vã esperança promete,
Ou a morte o estorva, ou a mudança.
Que é mal que ῦa alma em lágrimas derrete.
 
Já, Senhor, cairá como a lembrança,
No mal, do bem passado é triste e dura,
Pois nace aonde morre a esperança.
 
E se quiser saber como se apura
Em almas saudosas, não se enfade
De ter tão longa e mísera escritura.
 
Soltava Éolo a rédea e liberdade
Ao manso Favónio brandamente,
E eu a tinha já solta à saudade.
 
Neptuno tinha posto o seu tridente;
A proa a branca escuma dividia,
Com a gente marítima contente.
 
O coro das nereidas nos seguia;
Os ventos, namorada Galateia
Consigo, sossegados, os movia.
 
Das argênteas conchinhas, Panopeia
Andava por o mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.
 
Eu, trazendo lembranças por antolhos,
Trazia os olhos n’água sossegada,
E a água sem sossego nos meus olhos.
 
A bem-aventurança já passada
Diante de mim tinha tão presente,
Como se não mudasse o tempo nada.
 
E com o gesto imoto e descontente,
Cum suspiro profundo e mal ouvido,
Por não mostrar meu mal a toda a gente,
 
Dezia: Ó claras Ninfas! se o sentido
Em puro amor tivestes, e inda agora
Da memória o não tendes esquecido;
 
Se, porventura, fordes algῦa hora
Adonde entra o grão Tejo a dar tributo
A Tétis, que vós tendes por Senhora;
 
Ou já por ver o verde prado enxuto,
Ou já por colher ouro rutilante,
Das tágicas areias rico fruto;
 
Nelas em verso erótico e elegante
Escrevei cῦa concha o que em mim vistes:
Pode ser que algum peito se quebrante.
 
E contando de mim memórias tristes,
Os pastores do Tejo, que me ouviam,
Ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.
 
Elas, que já no gesto me entendiam,
Nos meneios das ondas me mostravam
Que em quanto lhes pedia consentiam.
 
Estas lembranças, que me acompanhavam
Por a tranquilidade da bonança,
Nem na tormenta triste me deixavam.
 
Porque, chegando ao cabo da Esperança,
Começo da saudade que renova,
Lembrando a longa e áspera mudança;
 
Debaixo estando já da estrela nova
Que no novo hemisfério resplandece,
Dando do segundo axe certa prova;
 
Eis a noute com nuvens se escurece;
Do ar, subitamente, foge o dia;
E todo o largo Oceano se embravece.
 
A máquina do Mundo parecia
Que em tormentas se vinha desfazendo;
Em serras todo o mar se convertia!
 
Lutando, Bóreas fero e Noto horrendo
Sonoras tempestades levantavam,
Das naus as velas côncavas rompendo.
 
As cordas, co ruído, assobiavam;
Os marinheiros, já desesperados,
Com gritos pera o Céu o ar coalhavam.
 
Os raios por Vulcano fabricados
Vibrava o fero e áspero Tonante,
Tremendo os Pólos ambos, de assombrados!
 
Amor ali, mostrando-se possante,
E que por algum medo não fugia,
Mas quanto mais trabalho, mais constante,
 
Vendo a morte presente, em mim dezia:
— Se algῦa hora, Senhora, vos lembrasse,
Nada do que passei me lembraria. —
 
Enfim, nunca houve cousa que mudasse
O firme amor intrínseco daquele
Em quem algῦa vez de siso entrasse.
 
Ũa cousa, Senhor, por certa assele,
Que nunca Amor se afina nem se apura,
Enquanto está presente a causa dele.
 
Destarte me chegou minha ventura
A esta desejada e longa terra,
De todo pobre honrado sepultura.
 
Vi quanta vaidade em nós se encerra,
E nós próprios quão pouca; contra quem
Foi logo necessário termos guerra.
 
Ũa ilha que o rei de Porcá tem,
E que o rei da Pimenta lhe tomara,
Fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
 
Com ῦa grossa armada, que juntara
O Vizo-Rei, de Goa nos partimos
Com toda a gente de armas que se achara.
 
E com pouco trabalho destruímos
A gente no curvo arco exercitada;
Com morte, com incêndios os punimos.
 
Era a ilha com águas alagada,
De modo que se andava em almadias;
Enfim, outra Veneza trasladada.
 
Nela nos detivemos sós dous dias,
Que foram pera alguns os derradeiros,
Pois passaram da Estige as ondas frias.
 
Que estes são os remédios verdadeiros
Que pera a vida estão aparelhados
Aos que a querem ter por cavaleiros.
 
Oh! lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
Como vivem no campo sossegados!
 
Dá-lhes a justa terra o mantimento;
Dá-lhes a fonte clara de água pura;
Mungem suas ovelhas cento a cento.
 
Não vêem o mar irado, a noute escura,
Por ir buscar à pedra do Oriente;
Não temem o furor da guerra dura.
 
Vive um com suas árvores contente,
Sem lhe quebrar o sono repousado
A grã cobiça do ouro reluzente.
 
Se lhe falta o vestido perfumado,
E da fermosa cor assíria tinto,
E dos torçais atálicos lavrado;
 
Se não têm as delícias de corinto,
E se de Pário os mármores lhe faltam,
O piropo, a esmeralda e o jacinto;
 
Se suas casas de ouro não se esmaltam,
Esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
Onde os cabritos seus, comendo, saltam.
 
Ali lhe mostra o campo várias cores;
Vêem-se os ramos pender co fruito ameno;
Ali se afina o canto dos pastores;
 
Ali cantara Títiro e Sileno,
Enfim, por estas partes caminhou
A sã Justiça pera o Céu sereno.
 
Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!
 
Este, bem facilmente alcançaria
As causas naturais de toda a cousa:
Como se gera a chuva e neve fria;
 
Os trabalhos do Sol, que não repousa,
E porque nos dá a Lua a luz alheia,
Se tolher-nos de Febo os raios ousa;
 
E como tão depressa o Céu rodeia;
E como um só os outros traz consigo;
E se é benina ou dura Citereia.
 
Bem mal pode entender isto que digo
Quem há-de andar seguindo o fero Marte,
Que sempre os olhos traz em seu perigo.
 
Porém seja, Senhor, de qualquer arte;
Pois posto que a Fortuna possa tanto
Que tão longe de todo o bem me aparte,
 
Não poderá apartar meu curo canto
Desta obrigação sua, enquanto a morte
Me não entrega ao duro Radamanto;
 
Se pera tristes há tão leda sorte.
 
Luís de Camões (1524? – 1580?)

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