terça-feira, 4 de junho de 2024

MOEDAS

 
A propósito da representação de Camões assinada por José Aurélio, interrogo-me sobre como seria de facto Camões? A representação mais antiga que dele conhecemos mostra-o cego do olho direito, com barba e bigode fartos, nariz longo e sinuoso, aparentemente partido, cabelo curto, espigado, com entradas… Mas como seria ele verdadeiramente? Imagino-o com aspecto de mendigo, um miserável entregue à desventura. Sempre achei piada ao modo como construímos na nossa mente imagens daquilo que desconhecemos, tendendo a embelezar os mitos, os ídolos, os ícones de uma cultura. Como se não fossem humanos, ou como se tivessem passado a vida no spa, na manicura, a arranjar cabelo e unhas e a fazerem peelings. O Jesus Cristo que geralmente nos mostram é louro, pele lisinha como a de um bebé, olhos azuis, parece nórdico. Pouco provável que o verdadeiro tenha correspondido a tal figura. Imagino-o trigueiro, com cabelo encaracolado, pencudo, dentes estragados. Como seria Camões? Quem o leia (quem o lê?), pode ficar com uma ideia, não porque tenha escrito um auto-retrato à maneira de Bocage, mas porque se foi apagando no que escreveu. Que ficou zarolho, não há dúvida. O Camões de José Aurélio lembra-me “O Homem Elefante” de David Lynch, quando sai à rua com um pano metido na cabeça. Talvez seja a melhor representação possível desse que deixaram morrer à fome para encherem a boca dele, parafraseando Almada. Tem qualquer coisa de anormal, sim, de monstruoso. Melhor fora que o lessem.

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