quarta-feira, 7 de agosto de 2024

À MESA DO VENTO

 


Sabemos que tudo continuará sem nós
A morte confirma que não éramos necessários
e só a liberdade ou a sua invenção poderia integrar-nos
na grande onda volúvel do universo
Mas o que nós conhecemos melhor é a nulidade absurda e essencial
a que o tempo é alheio no seu arco irrevogável
Não podemos assumir o inexorável enigma
do nascimento e da morte O que nos cabe construir
é a habitação de cada instante a invenção do possível
de um espaço de respiração de uma delicadeza voluptuosa
 
Vivemos separados na solidão de um círculo
Que perdeu a substância real e o sangue da imaginação
É nesse círculo de cal que inscrevemos os signos incertos
Que o vento há-de disseminar nos campos do olvido
O poema imagina a combinação fortuita da sua anulação
e avança no devir para levantar uma coluna de água
que seja a sua vitória nula sobre o não sentido do mundo
 
Que impossível é a voz que canta mas dilata
o pulmão do ser e liberta a boca contraída
porque só ela poderá ser a abertura viva
para a glória invulnerável de um instante absoluto
Só nela o barco e a árvore a serpente e a ave
podem unir-se num sopro de instantânea felicidade
em que estaremos no mundo como num corpo amado
 
Mas a nossa vida decorre entre os fragmentos do caos
ou na violência do vazio E as coisas aparecem-nos
no seu excesso absurdo e arbitrário
Onde está a sabedoria a humildade a lucidez
onde a maturidade do obscuro vigor?
O que escrevemos é uma ficção entre a vertigem e a náusea
mas estas perduram num cerco irrefutável
e nós sentimo-nos indefesos na dispersão confusa
bombardeados pelos clangores e pelos gritos obscenos
que agridem o silêncio das árvores e a transparência aérea
 
António Ramos Rosa, in À Mesa do Vento seguido de As Espirais de Dioniso, Pedra Formosa, colecção Arco Imperfeito, Dezembro de 1997, pp. 25-26.

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